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Cabeças de papel

Em expansão no País, as escolas cívico-militares são caras, ineficientes e parecem servir apenas para inflar a renda de oficiais da reserva

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Mais de 190 mil estudantes paranaenses frequentam as escolas militarizadas por Ratinho Jr., sempre disposto a agradar o eleitorado bolsonarista – Imagem: Lucas Fermin/SEED/GOVPR
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Na Constituição de 1988, não existe menção alguma sobre a atuação dos militares na política educacional brasileira. Essa ausência também se observa no Plano Nacional de Educação (Lei 13005/2014), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/1996) e no Estatuto dos Militares (Lei 6880/1980). Ainda assim, o Brasil tem 42 colégios militares, administrados diretamente pelo Exército, pela Marinha ou pela Aeronáutica, e quase mil escolas cívico-militares em funcionamento, modelo híbrido em ascensão no País e que tem gerado intensa celeuma e disputa ideológica.

Recentemente, o governador paulista Tarcísio de Freitas conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa, em uma sessão marcada por violenta repressão policial aos estudantes que protestavam contra a iniciativa, seu projeto para implantar cem escolas cívico-militares no estado. Um número ínfimo diante de um universo de mais de 5 mil unidades da rede pública paulista, mas o suficiente para acalentar sua estridente base bolsonarista.

São Paulo é um dos últimos estados a aderir ao modelo. No Paraná, já existem 312 escolas cívico-militares, que atendem mais de 190 mil estudantes. No ranking nacional, destacam-se ainda ­Goiás e Bahia, que contam, respectivamente, com 124 e 121 colégios com essa formatação. Com exceção de Sergipe, todas as unidades da federação possuem escolas militarizadas, sejam administradas pelos governos estaduais ou pelas prefeituras. De nada adiantou a debandada da União. Em julho do ano passado, o governo federal revogou o Decreto 10.004/2019, assinado por Jair Bolsonaro, que instituía o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, o Pecim. A decisão provocou reação imediata dos governadores bolsonaristas, que ameaçaram dar continuidade ao programa em nível estadual, promessa que vem sendo cumprida desde então.

Os colégios do Exército têm um custo por aluno três vezes maior que o das escolas públicas convencionais

Policiais militares, do Corpo de Bombeiros e até da Guarda Metropolitana, a maioria da reserva, são recrutados para assumirem função de apoio disciplinar e até para participar da gestão desses colégios. Além do soldo, recebem generosas gratificações, em valores muitas vezes superiores aos salários dos próprios professores. Em Goiás, os militares estão presentes no apoio disciplinar, nas áreas administrativa e pedagógica, e na direção escolar. Antes mesmo da revogação do ­Pecim, o governador Ronaldo ­Caiado, do União Brasil, anunciou que o Estado iria assumir as seis escolas cívico-militares do programa nacional, agregando as unidades aos 70 Colégios Estaduais da Polícia Militar existentes desde 1998. “Não muda nada. Esse processo já foi decidido por nós, porque sabemos da eficiência e o quanto o colégio militar tem trazido de resultados no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica)”, disse Caiado, um dos cotados pela extrema-direita para disputar a Presidência da República em 2026.

Como pano de fundo para camuflar o caráter ideológico da militarização na educação, os adeptos da modalidade falam em maior segurança à comunidade escolar e usam o falacioso argumento de que as escolas geridas pelas Forças Armadas têm melhor desempenho, motivo pelo qual o modelo deveria ser replicado na educação básica regular. De fato, os colégios administrados diretamente pelo Exército, 15 em todo o País, apresentam um desempenho superior ao das escolas públicas regulares, mas esse resultado está bem aquém da performance dos institutos federais e de instituições de ensino vinculadas a universidades. No Enem 2023, para citar um emblemático exemplo, apenas quatro escolas públicas tiveram alunos com nota máxima em Redação e nenhuma delas era militarizada.

“Se a vontade do propositor do Pecim fosse, de fato, a busca por modelos de gestão eficiente ou excelente para inspirar as escolas públicas regulares, o modelo de gestão das escolas de aplicação (geridas por instituições de ensino superior) deveria ser priorizado, ao invés do modelo de gestão dos colégios militares”, diz trecho da nota técnica assinada pelo Ministério da Educação que embasou o fim do Pecim.

Fonte: Education at a Glance 2023/OCDE

Acabar com o programa nacional de escolas cívico-militares é visto, por especialistas, como um gesto meramente simbólico do governo federal, que não fez esforço algum para deter o avanço desse modelo escolar nos estados e municípios. Um gesto, aliás, que terminou estimulando a militarização na educação em várias localidades, tamanha a polarização ideológica que gira em torno do tema. A extinção do ­Pecim representou apenas o fim dos repasses do MEC para os colégios militarizados.

“Criar modalidade educativa é uma competência exclusiva da União, porque passa por lei nacional. Estados e municípios não podem militarizar escola”, aponta a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, professora da UnB e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização na Educação, lembrando a existência de uma Ação de Inconstitucionalidade parada no STF a tratar especificamente o caso do Paraná. O relator do caso é o ministro Dias Toffoli. Professor da UFABC, o pesquisador Salomão ­Ximenes acusa o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação de serem omissos, por não se posicionarem sobre a inconstitucionalidade e a incompatibilidade das escolas cívico-militares com as diretrizes de base da educação brasileira. Ele também cobra do presidente Lula a revogação do Decreto 88.777, assinado por Bolsonaro, que regulamenta o papel das Forças Armadas e tem dado sustentação para as várias iniciativas nos estados e municípios que insistem nesse modelo.

“Os militares não têm, entre suas funções, atuação em instituições educacionais. Então, além de ocuparem o papel de profissionais da educação que estão regulados na LDB, eles atuariam em desvio de função. O decreto de Bolsonaro contorna essa vedação, incluindo, dentre as atribuições das Forças Armadas e das forças auxiliares nos estados, a atuação em escolas. Se revogar o decreto, Lula retiraria a base jurídica que justifica a presença de militares nas escolas”, diz Ximenes, acrescentando que já existe um parecer da Advocacia-Geral da União contrário à militarização da educação pública.

Miriam Fábia Alves, professora da UFG e presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação, também cobra um posicionamento do governo federal sobre o avanço desse modelo escolar. “Os colégios cívico-militares descumprem um conjunto de princípios da educação brasileira assegurados na legislação, como a gestão democrática, a liberdade para ensinar e para aprender e a diversidade pedagógica. Os militares impõem uma lógica da caserna, do quartel dentro da escola, um problema grave que a gente precisa enfrentar. O governo federal deveria ter uma posição mais incisiva em relação a esse retrocesso”, lamenta a pesquisadora, chamando atenção para a falta de transparência sobre essas escolas, já que nem os próprios estudiosos conseguem ter acesso aos dados.

O discurso de que colocar militares no interior dos colégios vai reduzir a violência é outra falácia apontada pelos especialistas. São incontáveis os relatos de bullying, de agressão e de assédio moral e sexual nos colégios militarizados. “O confronto entre aquilo que os estudantes fazem e aquilo que os agentes de segurança querem que façam, via de regra, gera muitos conflitos. Dizer que os estudantes só podem ficar na escola se bater continência, se cantar o Hino Nacional, se cortar o cabelo, se vestir tal roupa, se usar tal maquiagem, se tiver o brinco de tal tamanho, isso por si só já é uma violência”, salienta Santos. “A educação, por natureza, é a área da horizontalidade, da pergunta, do diálogo. Quando você militariza a escola, não cabe dúvida, só cabe obediência à regra estabelecida hierarquicamente.”

Para Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP, integrante da Rede Escola Pública e Universidade e do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a militarização na educação fere de morte um dos preceitos daquilo que a escola pública tem de mais importante: a diversidade. “A escola pública é o lugar onde as pessoas aprendem a ter uma vida pública e a militarização ela vai na direção da formatação dos corpos: os meninos se vestem de uma certa forma, as meninas de outra, o cabelo é assim, a bijuteria é assado. São normas e formas de conduta que impedem os debates sobre gravidez na adolescência, sexualidade, gênero, raça, ditadura. Enfim, impede o desenvolvimento da criticidade e da inovação pedagógica. Não tem benefício. No fim das contas, vemos apenas prefeitos, governadores e secretários fazendo um aceno para suas bases eleitorais, preparando um terreno para 2026.”

Além de atacar o princípio da gestão democrática, a militarização das escolas ofende a dignidade humana, por impor uma lógica autoritária, acrescenta Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Profissionais em Educação (CNTE). “A segurança que defendemos tem a escola pública como patrimônio do público, onde a comunidade está inserida, a escola como um instrumento de espaço coletivo, de pertencimento público. Isso é que garante a segurança na escola. Portanto, o argumento de que militarizar vai dar mais segurança é falso, tem outras intenções por trás”, alerta o dirigente. “Não queremos estudantes com medo ou sendo disciplinados por imposição, mas por respeito e por formação cidadã.”

A repressão aos estudantes marcou a aprovação do projeto paulista de escolas cívico-militares – Imagem: Lucas Martins @lucasporto01

Autor do Dicionário de História Militar do Brasil, Francisco Teixeira, docente da UFRJ e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, também condena a participação militar na política educacional. “A noção de disciplina proposta pelas escolas cívico-militares é hierárquica de obediência. Pode ser que tenha alguma função numa tropa, mas uma classe de alunos não funciona como uma tropa. A obediência imediata, o silêncio, o ‘sim, senhor’ e ‘não, senhor’, a marcha, a ordem unida não são elementos de formação cidadã”, salienta. “Estamos vendo nesse momento a extrema violência da Polícia Militar de São Paulo, do Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais. Ora, é essa Polícia Militar que a gente quer que eduque nossos filhos, nossos netos? É isso que está sendo proposto?”

O jornalista Dioclécio Luz, autor do livro A Escola do Medo: Vigilância, Repressão e Humilhação nas Escolas Militares, em entrevista ao podcast Educação em Destaque, também chama atenção para o processo violento que representa a militarização nas escolas. “A polícia não resolve disciplina. Ela impõe um regime cruel e ilegal. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que nenhum menor pode ser submetido a um sistema de crueldade e humilhação. Vemos também a agressão aos jovens da periferia. É isso que tem lá dentro. Se Darcy Ribeiro e Paulo Freire fossem vivos, teriam um ataque do coração com essas escolas”, opina Luz. Em um vídeo publicado no site do governo do Paraná, um militar grita e os estudantes são obrigados a repetir uma insólita canção: “Faço parte de uma escola/que tem fibra e moral/disciplina elevada/uma escola sensacional”. Segundo Vanda Santana, do sindicato dos professores no estado, “a matriz curricular foi alterada para incluir Cidadania e Civismo como componentes na grade.”

No Enem 2023, só quatro escolas públicas tiveram alunos com nota máxima em redação. Nenhuma delas era militarizada

Além de ferir preceitos pedagógicos e não ter amparo no marco legal da educação pública, o colégio cívico-militar tem um custo bem mais alto que o da escola regular. O investimento anual por aluno da educação básica na área urbana gira em torno de 6 mil reais, enquanto um estudante de um colégio do Exército é três vezes maior, chega a 19 mil reais. Em relação às escolas cívico-militares geridas por estados e municípios não é possível fazer uma média do valor, porque cada ente público adota um método diferente. Os pesquisadores são, porém, unânimes em afirmar que elas são ineficientes e pesam demais nos cofres públicos, considerando os custos com as gratificações dos militares contratados e com reformas necessárias em algumas escolas para receber a militarização. Na época do Pecim, a gratificação do militares variava entre 6 mil e 9 mil reais, uma média que deve se repetir nos estados. Pelo projeto do governador Tarcísio de Freitas em São Paulo, os policiais recrutados podem receber até 6 mil reais por 40 horas semanais de trabalho, valor 13% superior ao salário dos professores estaduais. O piso nacional dos professores é de 4,5 mil reais.

Em um relatório sobre educação divulgado em 2023 pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil aparece como o terceiro pior de uma lista de 42 países, à frente apenas do México e da África do Sul. O documento mostra que o País investe anualmente por aluno 3,5 mil dólares, considerando todos os investimentos públicos na educação, divididos pela quantidade de matrículas do ensino fundamental até o médio. Os especialistas são unânimes neste ponto: não há mágica possível com um investimento tão baixo. Se deseja melhorar a qualidade de ensino, será preciso aplicar mais recursos na educação pública. •

Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cabeças de papel’

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