Educação
Escola não é quartel
Cumprir ordens, obedecer de forma cega, vai na contramão das exigências da vida moderna


Educação e repressão não combinam. As cenas de violência da Polícia Militar contra estudantes que protestavam durante a aprovação da lei instituindo o programa de escolas militarizadas no estado de São Paulo revelam um mau começo e um fim preocupante para essa iniciativa. Policiais espancando e prendendo jovens em pleno exercício do direito de manifestar sua opinião é algo intolerável em qualquer tempo ou lugar, muito menos numa Casa de Leis – e jamais no ambiente educacional.
A lei, proposta pelo governador Tarcísio de Freitas, foi aprovada pela Assembleia Legislativa em 21 de maio. Prevê a presença de policiais militares da reserva em escolas públicas para cuidar de temas relacionados à disciplina, organização, segurança e de programas extracurriculares, sobretudo aqueles voltados ao civismo e aos valores da família tradicional e da pátria. Dados levantados pela RePME, a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização na Educação, em cooperação com outras entidades, mostram que no Brasil existem cerca de 834 escolas estaduais e municipais funcionando nesse modelo que ganhou um grande impulso no governo Jair Bolsonaro com a instituição do Pecim, o programa de escolas cívico-militares. Com o início do governo Lula, o programa foi acertadamente descontinuado.
Ainda falta uma avaliação mais completa sobre os resultados desse tipo de organização escolar que, aliás, tem sido implementado por alguns estados e municípios há mais tempo, inclusive por administrações do campo progressista. Não há evidências de que a militarização do ensino influencie positivamente o desempenho dos alunos. Além disso, esse formato não tem amparo legal em nenhum dos dispositivos que regem a educação brasileira.
Boas escolas formam rebeldes com causa. E isso é bom
Embora haja um amplo consenso contra o modelo cívico-militar entre educadores e especialistas que estudam o tema, é espantoso que a ideia goze da simpatia de muitas famílias e até de alguns professores. Espantoso, mas compreensível: com dificuldades de assegurar um adequado suporte educacional doméstico e diante de um cenário cada vez mais grave de violência e desinformação, alguns pais e responsáveis acreditam que a escola precisa ser mais rigorosa e “colocar os meninos na linha”. Da mesma forma, alguns professores, obrigados a lecionar para classes superlotadas e sem condições mínimas para a realização de seu trabalho, acreditam que um regime disciplinar mais rígido e punitivo lhes poderia facilitar a vida. O que muitos não se dão conta é que a presença de agentes policiais na organização escolar contamina as bases do ambiente educacional com outro tipo de cultura, com outros valores, na contramão de tudo o que se deseja e se espera de uma educação emancipatória para a cidadania contemporânea.
Policiais são treinados para a contenção e para a repressão. São o braço do Estado para o uso da força. Sua visão de organização é a tropa, onde não se admite a divergência e se preconiza a obediência cega no cumprimento de ordens. Escolas e seus profissionais, ao contrário, existem para expandir horizontes, proporcionar experimentações, estimular questionamentos, fomentar a criatividade e o espírito crítico. A forma de ver o mundo aprendida na escola passa a fazer parte da vida presente e futura dos estudantes e da comunidade. A educação pública é um espaço de construção de projeto de sociedade, e dar as boas-vindas à polícia denota uma escolha que vai muito além da solução de questões práticas do cotidiano escolar. É uma escolha retrógrada, não apenas no campo dos valores, e absolutamente anacrônica em relação ao que os estudantes encontrarão na sua trajetória cidadã e na sua vida profissional.
Além de ser incompatível à aspiração de uma educação para a cidadania, a defesa da visão militar nas escolas pelo argumento da preparação para o mundo do trabalho é insustentável. As discussões atuais sobre cultura organizacional e competências profissionais questionam a própria noção de eficiência como regra máxima, bem como a estrutura mecanicista das relações de trabalho e das organizações. Com todo o avanço tecnológico, o lugar do trabalho humano está em transformação. Mas é sabido que para o profissional de hoje e do futuro, não basta seguir o manual, cumprir ordens, obedecer. É preciso questionar o status quo e criar novas formas de trabalhar – nas organizações públicas e privadas. Até mesmo empresas tradicionais investem recursos e energia para incorporar nas suas culturas a abertura ao erro, a segurança psicológica, a vulnerabilidade e a empatia. Menos hierarquia, menos comando e controle, mais ousadia e criatividade. Não porque é bom ou bonito, mas porque é essencial para a sua sobrevivência neste período de transição tecnológica. Algumas organizações perceberam que, para construir o novo, precisam de um ambiente que acolha o não saber, a dúvida e crie dinâmicas de colaboração efetiva na diversidade – a antítese da visão militar.
Aulas de Artes e Ciências são mais eficazes para introjetar valores como cooperação, limites e criatividades – Imagem: José Paulo Lacerda/CNI e Tony Oliveira/Ag. Brasília
Urgência ainda maior é a revisão das atuais bases de produção e consumo, que levaram a humanidade à situação calamitosa de destruição do planeta. Todas as gerações, as vivas e as futuras, lidarão com as consequências de um modelo exploratório, nocivo para natureza e para os indivíduos. Nos próximos anos, será necessário fortalecer uma forma mais solidária de viver juntos, defender os direitos humanos e lutar contra a degradação ambiental. Serão necessários novos hábitos, novos desejos e novos parâmetros de desenvolvimento. Uma reinvenção completa da sociedade, para a qual são indispensáveis a imaginação e a energia da juventude. Portanto, é absurdo permitir que a educação se molde à lógica de uma instituição fundamentada na existência da violência e do conflito. Cooperação, visão sistêmica e compromisso coletivo não se prestam a palavras de ordem, precisam ser vivenciados genuinamente para serem incorporados à forma de viver. Vivenciados desde a escola.
Disciplina e segurança não dependem de hierarquia e obediência. Não é assim. Reduzir a disciplina escolar à visão militarista tira dos estudantes a oportunidade de desenvolver seu verdadeiro sentido. É na interação entre as crianças e jovens, e deles com seus professores e com a comunidade, que se constrói o clima de segurança e respeito coletivo – e não pela repressão. Professores bem-preparados e em condições de trabalho adequadas são capazes de encantar seus alunos, fomentar o entusiasmo em aprender. Assim, a busca do aprimoramento pessoal ganha sentido. A disciplina pela adesão consciente, e não pelo medo. Escolas mais seguras são aquelas onde impera a gestão democrática e participativa, permeável ao contexto e às questões reais da comunidade. Com liberdade e responsabilidade na manifestação de ideias, crenças, argumentos, corpos e sentimentos.
Um ambiente de aprendizado ditado pelos valores do militarismo pode ter consequências nefastas sobre a forma como cada estudante estabelece sua relação com o aprendizado ao longo da vida. O caminho é outro. Professores de Ciências e de Matemática forjam a curiosidade, o pensamento analítico, e ensinam que a dúvida e o erro fazem parte da construção do conhecimento. Nas aulas de artes e de educação física se desenvolvem as potências criativas, de cooperação, bem como as noções de limites e possibilidades individuais e coletivas. É nas aulas de Sociologia, História, Filosofia, Geografia e Literatura que professores – e não soldados – ajudam a formar o pensamento crítico e a consciência sobre sociedade, país, nação e pátria. Nesse conjunto articulado, estão as oportunidades de desenvolvimento das habilidades necessárias ao presente e ao futuro.
Enfim, escola é, e deve continuar a ser, um campo de liberdade onde professores e seus alunos não podem ser tratados como tropa marchando em ordem unida. Boas escolas formam rebeldes com causa. E isso é bom. •
Cesar Callegari é sociólogo. Foi secretário de Educação Básica do MEC (governo Dilma), secretário da Educação da Cidade de São Paulo (gestão Haddad) e integrante do Conselho Nacional de Educação. Clara Cecchini é especialista em cultura e aprendizagem organizacional. Coautora do livro Aprendiz Ágil (Arquipélago Editorial, 2020) e fundadora do Clube da Escrita CC.
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escola não é quartel’
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