Política
Por água abaixo
As chuvas também devastaram o patrimônio histórico e arruinaram a vida cultural do estado


No início dos anos de 1960, o gaúcho Jorge Alves dos Santos montou uma pequena banca de jornal no centro de Porto Alegre. Com o tempo, ampliou a oferta de produtos e passou a também vender livros. Faleceu em 1977. Num primeiro momento a esposa, dona Geraci, assumiu o ponto. Depois, os dois filhos, Nara e Fernando, passaram a dividir a tarefa com a mãe. Agora, são os irmãos que administram o negócio familiar. Localizado em uma das esquinas defronte ao Mercado Municipal, um dos pontos mais tradicionais da cidade, a enchente destruiu quase tudo, menos a esperança e o desejo de recomeçar. “Há alguns anos enfrentamos a pandemia. Foi muito difícil, renegociamos as dívidas e conseguimos nos reerguer. Agora, vamos recomeçar outra vez”, afirma Fernando.
A destruição da banca da família Santos é um pequeno retrato do estrago causado pelas chuvas no ambiente cultural do Rio Grande do Sul. Por todo o estado, museus, teatros, centros culturais e prédios históricos tiveram suas instalações invadidas pelas águas. Incontáveis livrarias, sebos e editoras de livros perderam boa parte de seu acervo. No bairro Cidade Baixa, reduto boêmio de Porto Alegre, centenas de músicos, atores, técnicos e diretores de espetáculos caíram no desemprego da noite para o dia – cenário que se repete em incontáveis polos de cultura no estado.
Um relatório elaborado por um coletivo de instituições culturais dá uma pista da dimensão do impacto. A tabulação parcial de cerca de 1,7 mil respostas devolvidas aponta que 99,2% das atividades artísticas no estado foram prejudicadas pelas chuvas. Mais de 91% desses artistas são profissionais, sendo que 82% têm na arte e na cultura sua única fonte de renda. Ainda não é possível avaliar com exatidão o montante do prejuízo, mas, segundo cálculos da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos, Abrape, as perdas do setor podem chegar a 8 bilhões de reais.
Para socorrer os artistas gaúchos que perderam o sustento no desastre climático, a deputada federal Fernanda Melchionna, do PSOL, propôs, na Câmara dos Deputados, a criação de um auxílio emergencial. A ideia é que, até dezembro de 2024, seja pago um valor entre 3 mil e 10 mil reais aos trabalhadores da cultura, em duas parcelas. “Ao pautar essa discussão, esperamos sensibilizar o governo Lula, que pode editar Medida Provisória para fazer esse benefício chegar de forma mais célere aos nossos artistas.”
Segundo a assessoria de comunicação da Secretaria Estadual da Cultura, o desastre climático atingiu cinco instituições vinculadas à pasta: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, a Casa de Cultura Mario Quintana, o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, o Memorial do Rio Grande do Sul e o Museu Estadual do Carvão, em Arroio dos Ratos. Em meio às chuvas, uma força-tarefa conseguiu transferir a maior parte do acervo para andares superiores. A recuperação do mobiliário e dos prédios históricos será iniciada “tão logo seja possível a inspeção para apurar os estragos”.
Francisco Dalcol, diretor-curador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, destaca a dedicação dos funcionários da instituição, que conseguiram salvar a tempo obras de arte de valor inestimável, como telas de Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Iberê Camargo. “Só não foi possível remover as pesadas mapotecas, arquivos que guardam desenhos e gravuras. Ficaram suspensas, sujeitas à umidade, mas ainda estão inacessíveis.”
A Secretaria Estadual da Cultura pretende antecipar a liberação de recursos para os projetos aprovados pela Lei Paulo Gustavo, criada para auxiliar o setor cultural na pandemia de Covid-19 – o governo federal estendeu os pagamentos até o fim de 2024. Já foram liberados mais de 7,5 milhões de reais para cerca de 50 propostas, mesmo sem a prévia apresentação dos planos de trabalho. “Desde o início da crise, a secretária Beatriz Araújo tem feito reuniões sistemáticas com o Ministério da Cultura a fim de criar, propor e alinhar ações que atendam ao setor”, diz a pasta.
Da noite para o dia, milhares de artistas perderam o emprego. Eles reivindicam um auxílio emergencial para sobreviver até a retomada do setor
Para a presidente do Conselho Municipal de Cultura de Porto Alegre, Rozane Dalsasso, o impacto da tragédia é devastador no meio artístico. “Com eventos cancelados, espaços públicos e privados atingidos pelas águas, não há, em curto prazo, uma solução para a sobrevivência dos nossos artistas”. Por isso, diz ela, o Conselho sugeriu à Secretaria da Cultura do município a criação de um auxílio emergencial nos moldes de outro que foi editado quando ocorreu a pandemia, o “Edital Giba Giba”, com recursos da Lei Aldir Blanc. Solicitou ainda o pagamento integral dos editais do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre (Fumproarte) realizados em 2023, em caráter de urgência.
De acordo com o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, Maximiliano Ledur, o setor foi duramente impactado, principalmente na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Até o momento, não é possível ter uma ideia do prejuízo total. Muitos locais estão impossibilitados de serem acessados, pois a água ainda não baixou, mas as perdas são grandiosas.” Ele cita o exemplo da editora LP&M Pocket, que contabilizou 10 mil livros arruinados pela água e pela lama. “Tivemos perdas menores do que esperávamos em relação ao estoque (havia 90 mil livros no local), mas perdas consideráveis em relação aos móveis e equipamentos”, diz um comunicado divulgado pela empresa. Ao longo de 50 anos de história, a editora publicou obras de Luis Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, Darcy Ribeiro, Ziraldo, entre outros. Notabilizou-se ainda por reeditar clássicos da literatura mundial no formato de livro de bolso, de autores como Balzac, Shakespeare, Fernando Pessoa e Pablo Neruda. Até o momento 26 empresas procuraram a Câmara Rio-Grandense para relatar danos. “Infelizmente, algumas não vão se recuperar”, lamenta Ledur.
Na Zona Norte de Porto Alegre, maior polo da indústria gráfica no estado, 45 empresas ficaram totalmente alagadas. José Mazzarolo, vice-presidente do sindicato patronal, diz não ser possível fazer um diagnóstico das perdas, pois muitas empresas “ainda não puderam ser acessadas”, mas cita como exemplo sua própria gráfica, na qual todas as máquinas ficaram submersas. A estimativa é de um prejuízo entre 8 e 10 milhões de reais. “A pandemia”, observa Mazzarolo, “foi mais grave em termos sociais e de saúde, uma catástrofe humanitária, mas as chuvas tiveram efeito mais devastador na economia. Não foi só uma parada abrupta. Afetou maquinário, estoque e toda estrutura operacional das companhias.” •
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por água abaixo’
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