Economia
Empecilho ao crescimento
A meta de inflação de 3% ao ano não tem base na economia e impõe elevados sacrifícios ao País


Não bastasse a manipulação escabrosa das projeções de inflação elaboradas pelas instituições financeiras, sob supervisão do Banco Central, com ganhos fabulosos para especuladores e rentistas e perdas monumentais para as políticas públicas e a maioria da população, constata-se agora que até mesmo a base utilizada para essas manobras, a meta de inflação anual de 3%, fixada para 2024 e 2025 pelo Comitê de Política Monetária, é inexequível, alertam economistas. O irrealismo da meta impõe um sacrifício brutal para a economia e a sociedade, como se verá adiante.
A manipulação da Pesquisa Focus, denunciada por Eduardo Moreira, do Instituto Conhecimento Liberta, consiste na projeção arbitrária da taxa de inflação para 8% ao ano entre 2025 e 2028, pelos participantes anônimos da Pesquisa Focus, do Banco Central, sem qualquer base econômica defensável para isso. O exagero coincide com o pronunciamento extraoficial do presidente do BC, Roberto Campos Neto, em evento da XP em Nova York, sobre a tendência de desacelerar o ritmo da diminuição da taxa Selic a cada reunião do Copom, antes definido em 0,50 ponto porcentual, para 0,25. Há quem considere a fala de Campos Neto como uma espécie de senha preparatória de terreno para o Copom alçar novo patamar de juros, mesmo com o IPCA em tendência de baixa.
O irrealismo da meta de inflação aflorou na manifestação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na quarta-feira 22. O ministro reclamou que a meta de 3% é “exigentíssima” e “inimaginável”. A queixa de Haddad faz sentido, segundo economistas consultados por CartaCapital. Os números mostram um descolamento quase completo entre essa meta e a realidade econômica, a ponto de torná-la quase inexequível e impor ao País um esforço sem fim, leia-se corte sistemático de investimentos e de gastos.
O exagero da meta, apesar de pouco comentado na mídia e entre economistas, é evidente. A cada mês, o IBGE divulga a variação acumulada em 12 meses do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, a principal medida de inflação do País. O IPCA é utilizado tanto como referência para investimentos e reajustes salariais quanto para a determinação das políticas monetárias e das medidas econômicas. O regime de metas de inflação foi instituído no Brasil em janeiro de 1999 e é supervisionado pelo Banco Central, que costuma aumentar a taxa de juros quando a meta é ultrapassada além do limite permitido pela regra. O economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp, fez uma conta simples. “Considerado o período de dezembro de 1999, quando ocorre a primeira inflação anual pós-regime de metas, até abril de 2024, são 293 meses. Nesse espaço de tempo, a inflação ficou abaixo de 3% somente em 22 ocasiões, o que representa 8%. É muito pouco”, dispara Abouchedid.
Em 293 meses, ou quase 25 anos, o IPCA ficou abaixo desse patamar em apenas 22 ocasiões
O número irrisório de vezes em que o IPCA acumulado em 12 meses ficou abaixo de 3% durante quase 25 anos, prossegue o economista, atesta que os agentes econômicos ajustam os preços de bens e serviços, ao longo da história, acima desse patamar. “O Conselho Monetário Nacional não pode simplesmente fixar a meta em um nível que não tenha aderência ao comportamento dos agentes econômicos, sob pena de tornar o processo esquizofrênico. Essa fixação da meta como uma referência completamente abstrata, sem sustentação na realidade concreta, condiciona toda a política macroeconômica ao atingimento de um objetivo que não encontra amparo na realidade da economia brasileira”, dispara o professor da Facamp.
Segundo o economista Rafael Ribeiro, professor da UFMG e pesquisador da USP, as considerações do ministro Haddad sobre a inadequação da meta de 3% são pertinentes, pois “a inflação anual brasileira raramente atingiu esse patamar, com exceção dos anos de 2006 e 2018, e foi apenas em 2017 que a taxa ficou abaixo desse nível”.
Além disso, prossegue Ribeiro, o ministro está correto ao destacar que o núcleo da inflação, que exclui choques temporários nos preços, tem se mantido abaixo da inflação total recentemente. A política monetária deve responder somente às variações do núcleo inflacionário, pois choques temporários tendem a se autoajustar sem intervenção do Banco Central. Reagir à inflação corrente sem considerar o núcleo pode levar, portanto, a uma maior volatilidade na taxa de juros básica, gerando incerteza quanto à política monetária e prejudicando a ancoragem das expectativas dos agentes econômicos.
O economista Luiz Fernando de Paula, professor do Instituto de Economia da UFRJ, aponta os efeitos negativos profundos do estabelecimento, pelo Copom, de uma meta de inflação apartada da realidade. Uma meta de inflação baixa no Brasil, chama atenção De Paula, não faz sentido em função da existência de contratos (como reajustes de escolas e planos de saúde) e de indexação financeira, com boa parte da riqueza financeira vinculada à taxa Selic e ao IGP-DI. A isto se soma ainda a política de aumentos reais do salário mínimo, necessário em função dos baixos salários e da elevada concentração de renda no País. Isto gera uma inércia inflacionária que eleva a inflação em momentos de choque de oferta, como tivemos recentemente. Assim, não faz sentido uma meta muito baixa no Brasil, pois acaba gerando uma taxa de sacrifício em termos de perda de emprego e produto muito elevada no País.
Problema mundial. A política monetária do FED e do Banco Central Europeu não conseguiu domar o processo inflacionário – Imagem: iStockphoto e Renato Luiz Ferreira
No plano internacional, acrescenta o professor da UFRJ, apesar de não existir um processo que possa ser classificado como um novo comportamento da inflação, há alguns fatores, do lado da oferta, que impactaram de forma global na inflação, tornando-a um fenômeno mundial. Um fator novo, ainda que transitório, foi a crise da Covid-19, que gerou desestruturação e gargalos nas cadeias produtivas de produtos manufaturados, situação que levou tempo para normalizar. Por outro lado, a guerra da Ucrânia afetou o preço da energia e alguns insumos, gerando um choque de oferta importante. “Nessas circunstâncias”, recomenda De Paula, “deve-se elevar a taxa de juros com moderação para arrefecer os aumentos de preços de segunda ordem, deixando que o choque de oferta se dissipe com o tempo.”
Apenas a perspectiva de um choque deflacionário no mundo, com queda no preço dos combustíveis, ou de commodities, poderia justificar uma meta tão baixa quanto 3%, mas isso não existe, acrescenta Abouchedid. Ocorre o contrário, a inflação no exterior mostra uma certa resistência e a política monetária do Banco Central Europeu e do Fed para conter esse processo inflacionário ainda não teve sucesso.
A pandemia e a paralisação das atividades econômicas em 2020 trouxeram o temor inicial de deflação, mas as interrupções nas cadeias produtivas e a gradual reabertura econômica em 2021 levaram a um aumento acentuado das taxas de inflação no mundo, sublinha Ribeiro.
No ano seguinte, a inflação foi impulsionada ainda mais pela guerra na Ucrânia e pelo aumento dos custos de energia e gás natural. “Esse conjunto de fatores acabou desafiando a visão dos bancos centrais de que choques de oferta são transitórios e que, portanto, a inflação pode ser controlada exclusivamente com políticas restritivas pelo lado da demanda”, frisa o professor da UFMG.
A pandemia trouxe o temor de deflação, mas taxas cresceram em meio a distúrbios econômicos e políticos
Assim como aconteceu após a fala de Campos Neto em Nova York, o mercado financeiro entrou em rebuliço após a queixa de Haddad quanto à meta de inflação de 3%. A especulação nos mercados de juros e de câmbio, tornada recorrente com as frequentes declarações do presidente do BC sobre o comportamento futuro de juros e outras variáveis macroeconômicas e financeiras, é, contudo, condenável, aponta De Paula.
“O presidente do BC tem que ‘falar nos autos’, pronunciando-se pouco publicamente, deixando as explicações da política de juros para os comunicados do Copom. Nunca um presidente do BC falou tanto, antecipando sua opinião ao público e opinando sobre assuntos que não são de sua alçada, em particular na questão fiscal”, diz o professor da UFRJ. “Isto contribui para gerar instabilidade macroeconômica, no câmbio e no juros, o que é um contrassenso, pois caberia a ele acalmar o mercado. A questão da comunicação da política monetária é elemento importante na eficácia da política monetária e ela deve ser feita com muita serenidade.”
A confluência de interesses conflitantes no BC e no Copom reaviva o questionamento, no País e no exterior, do dogma da independência do Banco Central. “Dado que a política econômica afeta significativamente o desempenho econômico, é difícil argumentar que a política fiscal e monetária devem ser mantidas separadas. Os bancos centrais controlam a oferta monetária através das taxas a que emprestam aos bancos comerciais. Isto define a estrutura das taxas de juro de longo prazo, determinando as taxas a que os mutuários podem aceder aos fundos, o que por sua vez influencia o investimento e o desemprego. Se quisermos que os governos sejam responsabilizados pelo investimento e pelo desemprego, eles devem controlar também a política monetária”, propõe o economista Robert Skidelsky, professor emérito de Economia Política na Universidade de Warwick, na Inglaterra, no artigo intitulado O Mito da Independência do Banco Central, publicado no portal Project Syndicate.
O Parlamento Britânico publicou, em 2011, a seguinte “evidência”, destacada pelo Grupo de Reforma Fiscal Sistêmica da Universidade de Cambridge: “O cartel bancário, sancionado pelo Estado, compreende um banco central e bancos membros privados. O BC é responsável pela fixação de preços, partilha de informações, promoção dos interesses dos membros e prevenção de falhas por parte dos membros. Servir o interesse público não é o objetivo principal de um banco central. O cartel detém o poder exclusivo de fixar o preço e emitir o meio de tributação. Os governos geralmente exigem o pagamento de impostos apenas nos meios emitidos pelo cartel.” •
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Empecilho ao crescimento ‘
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