

Opinião
A massificação da mentira
Instrumento de vingança dos covardes e ressentidos, a calúnia tornou-se ainda mais nociva na era de sua reprodutibilidade técnica*


O desastre climático no Rio Grande do Sul, que causou 163 mortes e deixou quase 600 mil desalojados até a conclusão desta coluna, revelou-se ainda mais doloroso para as vítimas sobreviventes a partir do momento em que pessoas, com interesses escusos (às vezes, até para elas próprias), passaram a divulgar notícias falsas em meio à tragédia. A prática existia muito antes de voltar americanizada. Até o advento da terra sem lei das redes sociais, as mentiras, inocentes ou arrasadoras, tinham alcance menor e nomes singelos. Chamávamos de lorotas, tramoias ou traição os truques baixos dos que inventavam e faziam circular fofocas maldosas contra seus desafetos.
A calúnia era considerada uma forma de traição. Ainda que de contágio muito mais lento do que na era do WhatsApp, a propagação de boatos ou fofocas dependia de que outras pessoas acreditassem nelas e passassem adiante, boca a boca. Mesmo assim, a briga ou desavença resultantes da fofoca era um evento privado restrito a um pequeno círculo de conhecidos. Lembro-me de um aforismo do saudoso Plínio Marcos, sempre provocador: “Se é mentira, espalha logo, antes que desmintam”. Mas seu objetivo era desmoralizar os milicos do golpe de 1964.
Já o dispositivo da “viralização” das fake news tem alcance muito maior e mais destrutivo por conta do alcance das redes sociais. O leitor deve estar se perguntando: o que as fofocas têm a ver com as fake news? Ambas são instrumentos da vingança dos covardes e ressentidos. Filha legítima do bolsonarismo, uma mentira viralizada nas redes pode arrasar reputações.
Quem não se lembra do surto de calúnias bolsonaristas ante a perspectiva de vacinação para deter a propagação da Covid? Em vez de se engajar na campanha para mitigar os danos da crise sanitária (como fez Lula na tragédia gaúcha), o chefe da nação mentiu sobre a eficácia das vacinas e fez lives debochando da falta de ar dos pacientes que corriam risco de morrer.
Do outro lado da torrente de notícias falsas, estão suas vítimas. Não deixa de se sentir um pouco paranoica a pessoa que se torna alvo de uma fofoca. Já perceberam que o desmentido tem muito menos prestígio do que a falsa acusação? O desmentido não contém elementos de escândalo, o que faz com que muito menos pessoas se interessem por ele.
Penso que a satisfação de quem inventa e espalha notícias falsas é a contrapartida dos medíocres, que não conseguem criar nada que seja relevante. Sua retaliação – Contra quem? Quem é o culpado da insignificância alheia? – é assistir, ou ao menos imaginar, o estrago provocado pela notícia mentirosa contra alguém. A motivação de quem inventa mentiras contra outros envolve elementos de mediocridade, covardia e ressentimento. Tipo um Bolsonaro da vida.
Mas existem notícias falsas que não têm por objetivo destruir a reputação de uma pessoa específica, visam a destruição da confiança dos brasileiros no laço social. O semeador de mentiras busca desmoralizar aquilo que nos faz sentir pertencente a um País, um modo de vida, uma esfera de pensamento. Imagino que os medíocres que propagam fake news pensem: se eu sofro, sou capaz de fazer vocês sofrerem mais. Suas notícias falsas circulam numa terra sem lei. A terra dos covardes anônimos.
Por fim: o psicanalista francês Jacques Lacan dizia que não acreditava em pessoas, mas em dispositivos. Um dispositivo perverso, por exemplo, pervertia os canalhas e, ao mesmo tempo, muitas pessoas “de bem”. Esse é o poder maléfico da prática de disseminação de fatos inventados.
P.S.: Deu na Folha: “TSE multa Flávio, Zambelli e outros bolsonaristas por associar Lula a satanismo”. É uma fake news tão ruim que talvez nem gere apoiadores, mas vai saber… Os ressentidos topam tudo para se vingarem. •
* Na chamada desta coluna, tomo emprestado o conceito formulado por Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, pioneiro nos estudos que apontam as armadilhas da cultura de massa.
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A massificação da mentira’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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