Cultura

assine e leia

De dor e esperança

Após um hiato de sete anos, João Bosco lança um novo disco no qual se conecta aos Yanomâmi e apresenta uma canção inédita feita com Aldir Blanc

De dor e esperança
De dor e esperança
Novas rimas. Boca Cheia de Frutas traz várias parceiras do artista com o filho Francisco Bosco, filósofo e escritor – Imagem: Victor Correa
Apoie Siga-nos no

Boca Cheia de Frutas, novo álbum de João Bosco, é, segundo o próprio cantor e compositor, “um passo novo numa linha que já vem de muito tempo” e que começou a ser tecida quando lançou sua primeira gravação, a profana Agnus Sei (1972), feita em parceria com Aldir Blanc.

“Como músicos, todos estamos sentindo e fazendo música sobre o que nos influencia”, diz o artista, em conversa por telefone com CartaCapital, para falar sobre esse que é seu primeiro disco de inéditas em sete anos.

No novo trabalho, o artista nascido na zona da mata mineira, em 1946, e radicado no Rio de Janeiro, trafega entre o drama dos Yanomâmi e a lembrança de seu inesquecível parceiro Aldir – morto em maio de 2020, vítima da Covid-19 – sem abstrair a fé, a esperança e a alegria.

A canção que começou a dar forma ao disco nasceu de uma conversa com o filho Franciso Bosco, filósofo, escritor e letrista. Ao ouvir o pai apresentar-lhe uma composição fortemente ligada à terra, Francisco alertou-o sobre as condições dos povos originários no Brasil.

“Ele foi me explicando tudo o que eles vêm passando há muito tempo, mas nada parecido com o que aconteceu no governo anterior, do Bolsonaro”, conta. “Esses povos originários sofreram muito com água contaminada de mercúrio, por conta do garimpo ilegal.”

A partir dessa conversa, Francisco, que assina sete canções do disco com o pai, escreveu a letra de O Canto da Terra por um Fio, “mais próxima da distopia do que a utopia”, de acordo com o músico. No início da faixa, foi inserido o trecho de um canto Yanomâmi, entoado por crianças, encontrado por João Bosco enquanto assistia a vídeos desse povo na internet. Para o músico, os Yanomani representam o sofrimento vivido pelos indígenas no País nos últimos anos.

O Canto da Terra por um Fio tem João Bosco ao violão, acompanhado somente do violoncelo de Jaques Morelenbaum, em um som dramático, integrado à canção indígena da abertura e aos versos como um pedido de socorro à floresta: Foi quando o rio viu a sua vida por um fio/ Sentindo asfixia nas suas veias gigantes/ Mergulhou fundo, terra abaixo, no rumo do mar/ Pra viver, foi pra viver, foi pra viver sem fim.

“Em função desse processo, fiz também uma releitura de O Cio da Terra, uma canção que tem essa maturidade, do relacionamento do homem com a terra, e fala de tudo que ela nos dá”, explica João, sobre a obra-prima de Milton Nascimento e Chico Buarque tornada a última faixa do disco. Ao fim de O Cio da Terra, ouve-se, novamente, a canção ­Yanomâmi, mas dessa vez em um trecho com tom positivo e esperançoso.

“Fiquei tentando imaginar um Aldir que não está mais aí. E comecei a pensar no Aldir das coisas que ele gostava”, diz, sobre a faixa E Aí?

Em O Cio da Terra, o canto volta efusivo, ritmado, percussivo. “É como se prevíssemos uma vida nova, um futuro promissor, que é o sonho da gente sobre o Brasil”, descreve, para logo em seguida explicar que o título do disco, Boca Cheia de Frutas, é a tradução de um verso do canto ­Yanomâmi apresentado na faixa de encerramento. “Essa questão de boca cheia de fruta é muito emblemática. Ela nos traz a ideia da diversidade brasileira, os sabores diversos. Essas crianças cantam uma nação.”

A temática da terra – e de quem são seus verdadeiros donos – está presente também em Buraco, sétima faixa do álbum, outra parceria do músico com o filho. A composição remete à história do indígena cuja tribo foi dizimada e que, depois disso, passou a viver isolado. “Esse indígena do buraco representa grande parte do País”, diz. “Ele foi encontrado morto (em 2022) em um tapiri.”

“A gente vive num país de desigualdade única, absurda e que preserva isso de forma intolerável”, critica João. “Temos pessoas que não são visíveis. Já passou da hora de se pensar que o saudável para a nação é buscar uma forma mais digna para essa população.”

O álbum Boca Cheia de Frutas, lançado pela Som Livre, é ainda o primeiro no qual João Bosco pôde relembrar e reverenciar Aldir Blanc. A quarta faixa é uma música inédita da dupla e tem uma história curiosa.

Ao folhear Aldir Blanc, Resposta ao Tempo – Vida e Letras (2013), de Luiz Fernando Vianna, na noite de lançamento do livro, João viu uma música chamada E Aí?, assinada por ele e Aldir. “Quando li aquilo não me lembrei dessa música e o Aldir estava vivo”, conta. O tempo passou e a composição foi esquecida.

Em um encontro com Vianna, depois da morte de Aldir, João lembrou-se novamente de E Aí?, que nunca tinha musicado, embora o livro indicasse que sim. Em contato com Mary, ex-mulher do compositor, resgatou a letra, confirmou tratar-se da mesma publicada, pôs melodia e gravou-a no disco.

A única vez em que havia feito isso depois da partida do companheiro tinha ­sido em um álbum póstumo, Aldir Blanc Inédito (2021), que traz canções do letrista com vários compositores. Nesse trabalho, só uma parceria exclusivamente de João e Aldir aparece: Agora Eu Sou Diretoria, feita de fragmentos de letras de samba encontrados por João.

O melodista, aliás, diz estar em seus planos garimpar, nos inúmeros e longos e-mails trocados com o letrista, versos e poesias que possibilitem a criação de novas canções de ambos.

O processo de musicar E Aí? para o recém-lançado trabalho é repleto de referências. “Fiquei tentando imaginar um Aldir que não está mais aí. E comecei a pensar no Aldir das coisas que ele gostava”, exprime. O músico lembrou do disco Vida Noturna (2005), o único em que o letrista canta todas as faixas.

Homenagens. O novo disco traz, em duas faixas, um canto entoado pelos Yanomâmi. Aldir é relembrado em uma letra que havia deixado por musicar – Imagem: Robin Handbury-Tenison/Robert Harding Heritage/AFP e Micael Horchman

“Começo a canção com um assovio que é a maneira como se inicia o Vida Noturna. Depois, introduzi no meio, com o piano (executado por Cristóvão Bastos), a canção Tive Sim, do Cartola. O ­Aldir gostava muito de cantá-la”, recorda, antes de pontuar o que torna essa canção especial dentro da extensa obra da dupla.

“É uma letra que não tem aquela coisa ácida, ardilosa, perspicaz e sarcástica do Aldir”, diz. “Ela tem um contratempo de coisas que não dão certo, como uma delicadeza que não era comum no Aldir.” A parceira está presente ainda, em forma de homenagem, na décima e penúltima faixa do disco: Gurufim, nome de um ritual praticado em velórios no qual toca-se samba.

“Aldir foi um dos nossos grandes letristas, e tinha uma visão sem igual de Brasil”, diz.

“Nosso trabalho, desde o princípio, veio nessa linha de falar das pessoas simples, comuns, que são brasileiros de grande potencial criativo”, define. Foi esse o caso de João Cândido, da Revolta das Chibatas, o marinheiro negro que inspirou a canção O Mestre-sala dos Mares (1974):“A Marinha brasileira tem dificuldade até hoje de aceitar esse marinheiro, a sua história”.

Outro homenageado do álbum Boca Cheia de Frutas é Tom Jobim. “Fui muito amigo dele”, conta. “Essa homenagem é por causa de um disco que tinha quando morava em Ouro Preto, o The ­Composer of Desafinado (lançado em 1963, primeiro álbum do maestro). É emblemático. É instrumental. Ele toca piano”, afirma. A canção se chama SobreTom e tem arranjos bossanovísticos.

Aos 77 anos e após um longo interregno, João Bosco apresenta um grande disco – que é dele, em primeiro lugar, mas carrega consigo muitos outros brasileiros. •

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De dor e esperança ‘

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo