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Canções feitas para protestar

O movimento Nueva Canción Latinoamericana é recuperado em um livro que enlaça memórias familiares a histórias das décadas de 1960 e 1970

Canções feitas para protestar
Canções feitas para protestar
Intercâmbio cultural. A cantora argentina Mercedes Sosa (acima) e a chilena Violeta Parra estão entre os personagens do ensaio, que trata bastante também do Brasil – Imagem: Acervo/Museu Violeta Parra/Chile e Arquivo Nacional/Holanda
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A música de protesto é um instrumento de denúncia antigo, mas, na segunda metade do século passado, por razões semelhantes, ganhou contornos mais evidentes no Brasil e nos países vizinhos. Em Apenas Uma Mulher Latino-Americana: Em Busca da Voz Revolucionária, Bruna Ramos da Fonte explora esse tema de forma muito particular.

O livro é um ensaio que mistura memórias familiares e vivências da autora a fatos históricos ligados à criação das canções contestadoras, notadamente na América Latina tomada por governos militares autoritários, nos anos 1960 e 1970.

Jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, a autora conduz o relato a partir de um olhar político e social forjado no então efervescente ABC paulista, onde nasceu, no início da década de 1990. Bruna, além disso, tem outros quatro livros ligados à música: uma biografia de Sidney Magal, uma crônica biográfica de Roberto Menescal, um sobre a bossa nova e outro analítico dos últimos meses de Mozart.

O cancioneiro da chamada Nueva ­Canción Latinoamericana – Nova ­Canção Latino-Americana, movimento que pregava a temática social e política, além da valorização da arte tradicional do continente, em contraponto à massificação cultural imposta pelas multinacionais do entretenimento, tem dois expoentes ainda em atividade: Tarancón e Raíces de América, bandas formadas no Brasil.

Foram esses grupos, inclusive, que despertaram em Bruna Ramos, durante seus estudos em torno da música, um olhar para a América Latina. No livro, ela coloca em evidência o intercâmbio cultural entre os países da região e, além disso, descreve o ambiente vivido pelos artistas latinos mais engajados no período da repressão.

Acontece, porém, que o Brasil quase não dialoga no âmbito cultural com os seus vizinhos, em parte pela barreira da língua, como diz a autora, mas também por autossuficiência e soberba.

Mas, quando os países foram tomados por ditaduras, a agregação, ao menos na música, funcionou. Basta lembrar das parcerias feitas por artistas como os cubanos Pablo Milanés (1943-2022) e Silvio Rodríguez, a argentina Mercedes Sosa (1935-2009) e os brasileiros Chico Buarque, Milton Nascimento e Caetano Veloso, entre outros.

O fato é que, ao terem de buscar abrigo em outros países por criticar o governo, os artistas brasileiros sentiram, à altura, a necessidade de uma integração e da adoção de um discurso uníssono contra os regimes militares apoiados pelos Estados Unidos. Foi assim tomando corpo a canção de protesto e a luta pela democracia, que, naquele momento, juntou diferentes criadores latino-americanos. Hoje, esses laços político-musicais, como pontua no livro Bruna Ramos da Fonte, estão desfeitos.

Em seu percurso narrativo, a autora não adentra no período auge das músicas de protesto no Brasil, na segunda metade dos anos 1960 – que já possui vasta literatura e cinematografia, principalmente focadas nos festivais da canção. Ela faz apenas apontamentos dos perío­dos pré e pós-golpe.

Algumas dessa canções, como Acordar Amor, de Julinho da Adelaide (pseudônimo de Chico Buarque) e O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, voltaram à tona durante o governo Bolsonaro.

Mulher Latino-Americana: Em Busca da Voz Revolucionária – Bruna Ramos da Fonte. (Editora Rocco, 280 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Bruna, por outro lado, aprofunda-se em histórias menos conhecidas. Uma delas é a prisão do sambista Luiz Ayrão, em 1964, então estudante de Direito e membro da União Nacional dos Estudantes (UNE). Como Ayrão era muito ligado ao samba romântico, pouco afeito a intromissões políticas, esse é um fato pouquíssimo conhecido.

O livro detém-se também sobre o chileno Víctor Jara (1932-1973), morto pela ditadura de seu país e símbolo, na América Latina, do uso da arte como instrumento de manifestação política. O artista não utilizava o termo canção de protesto, por considerar que ele havia sido incorporado pela indústria fonográfica, preferindo a expressão “música revolucionária”. Nos protestos de 2019, no Chile, suas músicas foram cantadas nas ruas.

Violeta Parra (1917-1967), outra perseguida pelo ditador chileno Augusto ­Pinochet, tem tratamento extenso no livro. Bruna teve contato com Tita ­Parra, neta da cantora e compositora chilena, com quem se encontrou no Chile. No país, a autora entrevistou também o escritor Antonio Skármeta.

Argentina e Cuba foram outros países que Bruna Ramos visitou para realizar as pesquisas para o livro. Seu envolvimento emocional com o tema e seu posicionamento político perpassam todo o ensaio, que ganha, em alguns momentos, um tom quase didático.

Para historicizar seu tema, Bruna lembra que a música de protesto se consolidou no início do século passado, como elemento de resistência e crítica social.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Maurice Ravel, que foi para o campo de batalha, fez uma composição em homenagem aos amigos mortos no conflito. ­Roger Waters, que ficou órfão ainda bebê, depois de o pai morrer em combate na Segunda Guerra Mundial, traduzia, em letra e melodia, no álbum The Wall (1979), do Pink Floyd, os efeitos nefastos da guerra. ­Bruce Springsteen, em Born in The U.S.A. (1984), refere-se ao sofrimento dos veteranos americanos na Guerra do Vietnã.

No Brasil, o cancioneiro de protesto reavivou no período entre o ­impeachment de Dilma Rousseff e o fim do governo Bolsonaro. Os álbuns O Amor É Um Ato Revolucionário (2019), de Chico César, e Sobre Viver (2022), de Criolo, são dois exemplos profundos na abordagem dos tempos sombrios recentes. •

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Canções feitas para protestar’

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