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Procissão sem-fim

Famílias aterrorizadas fogem de Rafah, enquanto Israel ignora a pressão internacional e prepara ataque total à cidade

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Deslocamento forçado. As Forças de Defesa de Israel determinaram a evacuação da cidade, que havia servido de refúgio para civis no início do conflito – Imagem: AFP
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Mais de 100 mil palestinos fugiram de Rafah, cidade no extremo sul de ­Gaza, no sábado 11, após avisos israelenses para que o local fosse evacuado antes de um ataque militar iminente, que abriria uma nova etapa no sangrento conflito iniciado há sete meses. As estradas que partem de Rafah estavam cheias de longas filas de jovens e velhos, doentes e saudáveis, viajando em picapes sobrecarregadas e velhos carros, em carroças a cavalo ou carrinhos puxados à mão. Muitos caminhavam carregando seus pertences sob o sol escaldante de verão. Alguns eram empurrados em cadeiras de rodas, ou mesmo carregados.

A cada dia, mais pessoas fogem de ­Rafah, desde que as Forças de Defesa de Israel ordenaram a evacuação dos bairros do leste, pouco antes de tomarem o cruzamento de fronteira com o Egito, a leste da cidade, na terça-feira 7. Segundo as FDI, foi uma “operação precisa e limitada” para impedir o contrabando pelo Hamas de armas ou dinheiro para Gaza.

Eram 280 mil palestinos em fuga, segundo estimativa de funcionários das Nações Unidas, com quase metade desse contingente saindo da cidade em 24 horas. O ataque da semana anterior parece ter sido apenas um prenúncio da grande ofensiva prometida por Israel, apesar dos repetidos apelos à contenção por parte da ONU, de agências humanitárias e de aliados próximos.

Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, rejeitou a pressão dos EUA para adiar um ataque em grande escala a Rafah, dizendo que o Hamas baseou lá a maioria de seus principais líderes e as forças remanescentes. Isso levou o governo de Joe Biden a interromper a entrega de 3,5 mil bombas. Na semana passada, Netanyahu disse que Israel “resistiria sozinho” e lutaria com “as unhas”, se necessário.

As FDI instruíram os moradores com panfletos e mensagens nas redes sociais a deixarem o centro de Rafah no sábado. Em um comunicado, Israel disse que suas­ forças “continuam a agir contra a organização terrorista Hamas, que utiliza os moradores de Gaza como escudos humanos para suas atividades terroristas e proteção da infraestrutura”.

Cerca de 1 milhão de palestinos deslocados de outras partes da Faixa de Gaza estão abrigados em Rafah há meses. Agora a cidade está se “esvaziando”, disseram funcionários da ONU ao Observer, prevendo uma evacuação em massa nos próximos dias.

“Estamos num estado de extrema tensão e ansiedade”, lamenta Dina Zayed, de 54 anos, que está em Rafah há seis meses, desde que fugiu do norte de Gaza, logo após o início da guerra. “Não sabemos o que vai acontecer conosco. Estamos indo em direção ao desconhecido. Todo mundo sente o mesmo. Os próximos dias serão difíceis.”

Há graves preocupações sobre a segurança das pessoas que fogem para a “zona humanitária expandida” designada pelas FDI em Al-Mawasi, na costa, onde trabalhadores humanitários disseram que as condições já eram horríveis. Muhammad Qahman, de 54 anos, disse estar preocupado com as condições em Al-Mawasi, uma faixa de costa arenosa e dunas, com centenas de milhares de deslocados pressionando o abastecimento de comida, água potável e cuidados de saúde já totalmente inadequados. O saneamento quase não existe, levando à rápida propagação de doenças.

“Não sabemos o que vamos fazer. Estamos agora preparando nossas coisas para ir para a área designada pelo exército israelense, que é supostamente segura e humanitária, mas isso é simplesmente uma mentira”, afirma Qahman, que vive em Rafah desde janeiro.

Os palestinos relutam em migrar para a “zona humanitária expandida” designada pelo exército israelense

O fechamento da passagem de fronteira de Rafah com o Egito e as dificuldades para chegar à passagem de Kerem Shalom com Israel, devido aos combates, significam que uma ajuda limitada chega ao sul e centro de Gaza. As agências humanitárias denunciam que os fornecimentos de combustível são escassos, embora Israel tenha dito que entregou 200 mil litros de combustível a Gaza na sexta-feira 10 através de Kerem­ Shalom – a quantidade que a ONU diz ser necessária por dia para manter em movimento os caminhões de ajuda e os geradores dos hospitais.

As FDI também sinalizaram novas ofensivas no norte de Gaza e apelaram a todos os que viviam lá para que se mudassem para outro lugar. Os combates eclodiram em áreas a oeste e ao norte da Cidade de Gaza, onde o Hamas conseguiu restabelecer sua presença após a retirada das forças israelenses. Até agora, mais de 34.970 palestinos, principalmente mulheres e crianças, foram mortos na ofensiva israelense, lançada depois que o Hamas matou cerca de 1,2 mil pessoas, na maioria civis, e fez 250 reféns num ataque-surpresa ao sul de Israel, em outubro.

Acredita-se que cerca de 132 reféns israelenses permaneçam em Gaza, embora até metade já possa estar morta. No início de maio, surgiram brevemente esperanças de um cessar-fogo, mas foram frustradas quando Israel rejeitou um acordo proposto pelos mediadores.

Autoridades israelenses disseram ao site Ynet que as negociações sobre reféns e cessar-fogo com o Hamas não foram completamente interrompidas. As negociações indiretas seriam retomadas “se houver respostas do Hamas com as quais possamos trabalhar”, asseguraram.

O Hamas, por sua vez, afirmou na sexta-feira 10 que os esforços para alcançar uma trégua voltaram à estaca zero depois que Israel rejeitou um plano dos mediadores internacionais, enquanto a Casa Branca expressou seu compromisso de tentar manter os lados engajados, “mesmo que só virtualmente”. Manifestantes têm pressionado o governo israelense a buscar um acordo que resulte na libertação dos reféns.

Na sexta-feira 10, os EUA afirmaram que havia provas razoáveis de que Israel tinha violado o direito internacional de proteção a civis na sua condução da guerra contra o Hamas – a declaração mais forte até agora do governo Biden sobre o assunto. Em resposta ao relatório norte-americano, Ophir Falk, conselheiro de política externa de Netanyahu, disse que Israel agiu em conformidade com as leis e que o exército estaria tomando amplas medidas para evitar baixas civis, incluindo alertar as pessoas sobre operações militares por meio de ligações telefônicas e mensagens de texto. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Procissão sem-fim’

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