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Pela hora da morte

Cemitérios privatizados são acusados de praticar preços abusivos e empurrar serviços desnecessários

Pela hora da morte
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Sem paz . As empresas têm convocado familiares para exumar os corpos de mortos durante a Covid – Imagem: iStockphoto
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Marlene Araújo da Costa teme perder os restos mortais do pai, vitimado pela Covid-19 em 2020. Quando foi avisada pela administração do cemitério da necessidade de exumar o corpo, em junho passado, Marlene descobriu que teria de desembolsar 1.379,53 reais pelo serviço. “Na ocasião, vi que tinha uma placa informando outro preço bem inferior, e perguntei por que não poderia optar por ele. A atendente desconversou, explicou que a placa era antiga e deveria ter sido removida, e as empresas responsáveis pelo serviço funerário estavam autorizadas a praticar novos preços.”

A auxiliar de laboratório desempregada considerou a taxa abusiva e buscou informações sobre o procedimento. Ligou para o 156, canal de atendimento da prefeitura, e foi orientada a não pagar o valor anunciado. Meses depois, em novembro, tentou novamente a exumação, mas a empresa apresentou outro preço, ainda maior, 1.514 reais. “Até poderia pagar parcelado em muitas vezes no cartão de crédito, mas nesse meio-tempo conversei com outras pessoas que passaram pelo mesmo problema e descobri que a coisa poderia piorar.”

Justamente em junho passado, o serviço funerário de São Paulo foi privatizado e passou a ser administrado por quatro concessionárias: Consolare, Cortel, Maya e Velar. Desde então, o sistema acumula denúncias de preços abusivos e engodo, em tentativas de obrigar as famílias enlutadas a contratar serviços desnecessários. Ao buscar apoio, Marlene Costa deparou-se com uma esperteza. “Descobri que isso tem acontecido com muitas famílias. Como aqueles que morreram de Covid foram enterrados envoltos em muitos sacos plásticos para evitar a contaminação, os corpos acabaram não se decompondo, e não tem como fazer a exumação. Mas as empresas sabem disso e desenterram só para enterrar de novo e cobrar outra vez pelo serviço.” Se tivesse aceitado o procedimento, para fazer a inumação precisaria pagar mais 1.230 reais, ou optar pela cremação, ao custo de 2,8 mil reais. “Foi muito traumática a forma como perdi meu pai, não teve sepultamento. Não vou aceitar perder os restos mortais dele assim”, afirma.

Barreira. Profissionais autônomos enfrentam restrições para trabalhar, apesar das garantias dadas antes da privatização – Imagem: iStockphoto

Esses preços são apenas um exemplo das taxas praticadas desde a privatização do serviço funerário da capital paulista. Para se ter uma ideia, a exumação antes das concessões custava 132 reais, dez vezes menos. CartaCapital teve acesso a algumas notas de funerais nos últimos meses, e os valores para um mesmo atendimento podem variar muito. Os enlutados reclamam que não recebem informações precisas sobre o que é necessário e o que é opcional, e sentem-se induzidos a contratar serviços desnecessários. Um deles é a tanatopraxia, de conservação do corpo, indicada para casos de mortes violentas. O serviço tinha um preço fixo de 750 reais. Agora, pode aproximar dos 5 mil. A Velar oferece a “tanatopraxia especial prime”, por 2 mil reais. A Consolare tem a opção “morte natural nível 6” por 4,4 mil.

O funcionário público Amaury ­Guizelini, há 34 anos no serviço funerário, explica não haver motivos para cobrar valores diferentes no caso da tanatopraxia, pois o procedimento não tem variáveis. “O embalsamento é feito sempre da mesma forma, o que pode mudar um pouco é a preparação do corpo, maquiagem, arrumar o cabelo, coisas que não justificam esse preço”. Guizelini é um dos mais de 700 servidores realocados após a privatização. Sem ser consultado sobre suas habilidades e onde gostaria de trabalhar, foi direcionado à área ambiental. “Me sinto deslocado, passei mais de 30 anos fazendo a mesma coisa, eu tenho uma profissão, e agora estou subutilizado”, reclama. Para ele, conseguir retornar ao serviço funerário “é uma questão de honra”, porque ele gosta do que faz. Recorda com orgulho de seu primeiro trabalho, aos 22 anos, a cremação da ex-primeira-dama Eloá Quadros, esposa do ex-presidente Jânio Quadros. “Dedicamos a vida a isso, mas, com a chegada das empresas, fomos descartados.”

A situação dos servidores é outro nó da privatização. Assim como Guizelini, muitos se dedicaram durante décadas a uma mesma função e não se sentem aptos a desempenhar outras. Ana Nepomuceno trabalhou por 23 anos no Cemitério da Vila Mariana, hoje administrado pela Maya. “Recebi uma proposta da ­Consolare (concorrente) para deixar o serviço público e integrar a empresa. Mas, quando vi o treinamento, fiquei apavorada e recusei.” Segundo ela, os funcionários são orientados a oferecer o máximo possível de serviços, sem nenhuma sensibilidade diante das famílias. Ela compartilhou com a reportagem conversas de grupos de WhatsApp da empresa, no qual gerentes exigem que não sejam fechadas notas inferiores a 4,5 mil reais. “Lembrando que com notas maiores vocês recebem mais”, diz uma das mensagens.

O valor de alguns serviços funerários decuplicou após a privatização

Diante das denúncias, o vereador Hélio Rodrigues, do PT, acionou o Ministério Público e o SP Regula, responsável pela fiscalização do serviço. “Perguntei se os vendedores recebem comissão e não tive resposta. Se eles receberem comissão, é uma irregularidade grave.” Quando anunciou a privatização, o prefeito Ricardo Nunes justificou que, sob a administração de quatro empresas diferentes, o serviço receberia novos investimentos e a competitividade entre elas acarretaria redução dos preços. Deu-se o contrário. Durante diligências realizadas recentemente, o vereador relata um cenário de abandono. “Evidentemente, as concessionárias priorizam o lucro e não cumprem o combinado.”

Os jardineiros e empreiteiros dos cemitérios sempre foram trabalhadores autônomos. Com a chegada das empresas, passaram a reclamar de um bloqueio às suas atividades. Um dos sete empreiteiros do Cemitério da Lapa, administrado pela Maya, que pediu para não ser identificado por temer perseguição, diz estar sem obras desde junho. “Agora, depois de quase um ano, a administração autorizou um dos seis projetos que apresentei.” Construtor há 42 anos, tornou-se, nesse período, auxiliar da esposa, jardineira. “Nossa renda familiar despencou, meu trabalho foi totalmente prejudicado.”

Adson Carlos da Silva, secretário da Associação dos Trabalhadores Autônomos de Cemitérios, relata que o clima de hostilidade e perseguição se repete em quase todos os 22 cemitérios da capital. “É gente muito simples e, normalmente, trata-se de uma profissão que passa de pai para filho, ou é executada por pobres egressos do sistema prisional, que não encontraram outra coisa, ou por analfabetos, que têm muita dificuldade em exercer outras funções.” Segundo ele, a situação facilita o processo de monopolização dos serviços. “Hoje, as famílias chegam ao cemitério e são orientadas a não contratar serviços dos autônomos.”

Metas. O vereador Rodrigues investiga, entre outras denúncias, a pressão pela venda de serviços mais caros – Imagem: André Bueno/CMSP e Redes sociais

Acontece que os autônomos são regulamentados e têm o direito de oferecer os serviços nas mesmas condições que as empresas. Antes da privatização, o ex-prefeito Bruno Covas decretou a regulamentação do trabalho e deixou claro que, mesmo sob nova administração, eles seguiriam cadastrados para tal função. A agência reguladora informou que prepara uma cartilha para nortear o trabalho dos autônomos e garantir um tratamento respeitoso e justo no ambiente de trabalho.

Três das concessionárias responderam à revista por meio de nota. A Consolare afirma cumprir “rigorosamente as normas estabelecidas no contrato de concessão, com foco na melhora e zeladoria dos espaços e qualidade do atendimento ao público”. A Velar garante que “todos os valores praticados são previamente aprovados pelo Poder Concedente”, e a Cortel afirmou seguir “as diretrizes do contrato de concessão definido conforme o edital”. A Maya não se pronunciou até o fechamento desta edição. •

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pela hora da morte’

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