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A relativização das certezas

Caetano Galindo, autor de um livro de linguística e tradutor de James Joyce, aposta agora na potência da ficção

A relativização das certezas
A relativização das certezas
Galindo estreia no romance com Lia – Imagem: Annelize Tozetto/Festival de Teatro de Curitiba
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Caetano Galindo é, há muito tempo, um tradutor conhecido que, cada vez mais, se reconhece também como autor. Em 2023, o paranaense lançou Latim em Pó, livro de linguística tornado best ­seller. Este ano, estreou também no romance, com Lia.

Trata-se de uma história fragmentada e provocante, na qual diversos modos de narrar se enfileiram em uma linha do tempo embaralhada que busca delinear uma imagem clara de quem é a protagonista. Lia é alguém que, tal qual as personagens de James Joyce – de quem ­Galindo traduziu o monumental Ulysses – tem pequenas epifanias ao longo da vida.

Além de escrever e traduzir, Galindo­ pesquisa, orienta e leciona na Universidade Federal do Paraná. Trabalha ­ainda com teatro, participa de eventos e, de quebra, toca instrumentos musicais estranhos, como alaúde. Diz, mesmo assim, ser preguiçoso. E afirma produzir muito por gostar da pressão dos prazos.

Galindo concedeu entrevista a ­CartaCapital logo após ser anunciado como uma das atrações da Feira do Livro, que ocorre entre junho e julho em São Paulo, e enquanto sua peça Ana Lívia estava em cartaz no Festival de Curitiba.

CartaCapital: Latim em Pó trata da formação do português brasileiro, assunto político por si só. Ele chega a ser mais engajado do que Lia, cujo gênero proporciona toda a liberdade possível?
Caetano Galindo: Latim em Pó está no gênero da não ficção, mas ao escrevê-lo usei de artifícios narrativos, porque queria alcançar um público amplo, para além dos interessados em linguística. Um dos maiores objetivos do livro é corrigir o indevido complexo de inferioridade dos brasileiros em relação ao próprio idioma, espécie de ranço colonial. Em Lia, me permito uma irresponsabilidade maior, porque estou comprometido mais com o universo ficcional. A ficção pode ser feita com propósito político, mas não é a que me proponho.

Latim em Pó. Caetano W. Galindo. Companhia das Letras (232 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

CC: Lia é uma personagem fugidia, como aquelas figuras humanas cujo rosto jamais se revela nos sonhos. “Eu acho sempre estranho quando as pessoas vão lá e cravam uma definição de alguém”, diz um trecho. Para o Brasil de hoje, com posições tão definidas entre seus cidadãos, qual é a importância das nuances, caras à literatura?
CG: Literatura e ficção sempre tiveram esse papel duplo: ser um instrumento de conhecimento do mundo e dos outros, e também um lugar de relativização de certezas, onde as coisas têm de se revelar na sua complexidade maior. Sempre me interessou uma realidade em que nada precisa ser categórico, possibilitando que os matizes, os vieses e as imperfeições sejam viáveis, aceitáveis e desejáveis. Por isso, certa literatura feita como cruzada política – cujos méritos, em alguns casos, reconheço – não me interessa tanto.

CC: Lia tem vários narradores, inclusive de gêneros diferentes. Algo que ultimamente está em debate público é o lugar de fala. Isso concerne à literatura?
CG: É uma questão complicada, mas válida e do nosso tempo, então precisa ser discutida. Ela pode, por outro lado, ser limitante. Quando esse debate chegou na tradução literária, me incomodou porque surgiu a possibilidade de eu me ver cerceado enquanto tradutor homem, preto, na hora de traduzir homens brancos ou mulheres, por exemplo. A função dos tradutores é ser outra pessoa.

CC: Você traduziu autores como ­James Joyce, Abdulrazak Gurnah e ­Alice Munro. Onde se aproximam e se distanciam traduzir e escrever?
CG: Se distanciam por um elemento muito simples. Traduzir é partir de uma estrutura existente e revesti-la de uma nova pele, de um novo texto. Traduzindo, estou livre de conceber um mundo; ele já está lá. Para escrever do zero, essa estrutura tem de ser projetada e montada por mim e por meus aparatos. Se aproximam porque, seja traduzindo ou escrevendo, o processo de redação é o mesmo: preciso atender a certas demandas, resolver sutilezas, problemas, questões do texto, estilo, conteúdo e representação. Traduzir, sobretudo bons autores, como são os que por sorte traduzi, é um treino poderoso para escrever, no sentido de redigir literatura.

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CC: Você manteve uma correspondência aberta com a escritora Martha Batalha e, em e-mail enviado a ela, propõe pensar novas formas de representar a realidade. Nosso tempo já traz essas inovações?
CG: A gente tende a pensar que inovação é questão de qualidade, algo reservado a poucos e catastrófico, como um grande evento. Não sei se é bem assim, sobretudo no romance, essa forma supermutável. Acho que as mudanças estão acontecendo o tempo todo. Aliás, essa virada que vem ocorrendo, nos temas e nos conteúdos, centrada no que se narra, em que vozes se manifestam, é um jeito de inovar, reconceber a forma do romance. Como disse no texto à Martha, mais do que me interessar por narrativas que se constroem em cima de um modelo preestabelecido, prefiro uma investigação sobre como contar a história. Isso é influência direta do Ulysses.

CC: Quão importante é para você o diálogo constante com outros escritores e tradutores?
CG: Cresci isolado, acostumado a ter um ressentimento contra as panelinhas. Via sempre as mesmas pessoas se lendo, e achava tratar-se de um mecanismo elitista, excludente. Mas, com o tempo, percebi que o mecanismo é natural. Agora, com a internet, os grupos são maiores e mais abrangentes. Escrever e traduzir são atividades que exigem isolamento, então se reunir com quem tem interesses em comum é muito benéfico. Você pode desde conhecer uma editora nova até conversar sobre detalhes, como qual critério para escolher nomes de personagens. É muito importante, também, para a leitura fraterna de manuscritos. Quando Lia estava quase pronto, o Guilherme Gontijo Flores me sugeriu cortar um quarto do livro, o que fez toda a diferença no resultado. Esse é um conselho que só um irmão dá, né? Muita gente poderia até se ofender com algo assim. •

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A relativização das certezas’

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