Cultura
Com que gadget eu vou
Como um “broche” de IA preso à roupa ou um dispositivo a ser pendurado no pescoço podem levar a tecnologia vestível a outro patamar


Imagine que você esteja caminhando no parque e, de repente, se lembra de tarefa importante deixada para trás. Você precisava enviar um e-mail, saber o resultado de uma reunião ou combinar um almoço com um amigo. Sem perder o ritmo e sem precisar tocar na tela do smartphone, você diz em voz alta o que esqueceu e o pequeno dispositivo preso ao seu peito ou apoiado sobre seu nariz envia o e-mail, trata da reunião ou faz o convite.
É esse o tipo de conveniência que um número cada vez maior de empresas espera tornar real por meio da Inteligência Artificial (IA). Enquanto os chatbots generativos de IA, como o ChatGPT, ganhavam popularidade, mecanismos de busca como Google, aplicativos de mensagens como Slack e serviços de rede social como Snapchat corriam para integrar a tecnologia a seus sistemas.
Agora que se tornaram comuns em aplicativos e softwares, os complementos de IA tentam ingressar no reino do hardware: os primeiros dispositivos comerciais movidos a IA generativa começam a surgir e disputarão espaço com os smartphones.
Um dos primeiros será o “broche” AI Pin, da startup Humane, da Califórnia, um dispositivo que se prende à roupa por um ímã e pode enviar mensagens de texto, fazer ligações telefônicas, tirar fotos e tocar música. O AI Pin não suporta aplicativos e não tem tela. Ele usa um laser para projetar uma interface simples na palma da sua mão, e seu chatbot de IA integrado pode ser ensinado, por comando de voz, a pesquisar na web ou responder a perguntas – exatamente como você faria com o ChatGPT.
Os novos hardwares são vistos também como uma possível forma de se conter o uso excessivo de smartphones e de seus aplicativos viciantes
“Pretendo treinar o AI Pin para ser minha assistente pessoal e facilitar minha escrita e meu trabalho criativo”, diz a consultora Tiffany Jana, da Virgínia, que encomendou o dispositivo antes de seu lançamento nos Estados Unidos, em abril. Ela viaja com frequência e espera que o AI Pin possa substituir o fotógrafo e o tradutor que a acompanham.
A Meta, por sua vez, lançou, em parceria com a Ray-Ban, um par de óculos inteligentes com IA, e as chinesas TCL e Oppo seguiram o exemplo da controladora do Facebook, lançando seus próprios óculos de IA. Todos fazem mais ou menos a mesma coisa que o AI Pin, ou seja, se conectam a um chatbot de IA que responde a comandos de voz.
Se todos soam parecidos ao assistente de voz do smartphone ou à Alexa é porque, essencialmente, são. “O uso de IA em novos dispositivos já é padrão”, diz David Lindlbauer, professor-assistente do Instituto de Interação Humano-Computador da Universidade Carnegie Mellon, na Pensilvânia. “Todo mundo usa sugestões do Google ou da Siri para interagir com seus telefones, ou receber sugestões inteligentes de aplicativos.” A diferença, segundo ele, é que os novos dispositivos tentam incorporar as capacidades de IA de “uma forma menos evidente e mais generalizada”.
Essa intenção fica mais óbvia no Pendant, da startup norte-americana Rewind, e no Tab AI, do desenvolvedor Avi Schiffmann. Esses dois pequenos dispositivos são projetados para ficar pendurados no pescoço e gravar passivamente tudo o que você ouve e diz durante o dia, antes de transcrever e resumir as partes mais importantes para ler quando quiser.
Mas por que você quereria um dispositivo que faz pouco mais do que o seu smartphone? Em parte, para se libertar dos seus elementos menos apreciados. A Humane está lançando o AI Pin como uma forma de conter o uso excessivo de smartphones, oferecendo as mesmas funções essenciais sem os aplicativos viciantes que nos mantêm navegando compulsivamente.
Sem telas. A Meta, controladora do Facebook, lançou, em parceria com a Ray-Ban, óculos inteligentes, com IA. Já o “colar” Tab AI foi projetado para gravar tudo que dizemos ao longo do dia – Imagem: Redes sociais
“Um alcoólatra não é viciado na garrafa, mas no conteúdo”, diz Christian Montag, chefe de Psicologia Molecular da Universidade de Ulm, na Alemanha, fazendo uma analogia. As plataformas de redes sociais em particular, diz ele, têm interesse em prolongar deliberadamente o tempo de tela para nos apresentar mais anúncios ou coletar nossos dados.
A redução do tempo de tela pode parecer contraintuitiva, mas talvez não seja tão estranha assim. “Muitas pessoas usam fones de ouvido durante o dia todo”, diz Lindlbauer, “então é perfeitamente possível abandonar a tentação de percorrer as más notícias na tela por uma tecnologia que dá acesso ao mundo digital de forma constante, mas discreta.”
A tecnologia vestível tem, no entanto, uma história irregular. O Google tentou, em 2013, popularizar os óculos inteligentes como um substituto do smartphone que forneceria informações aos usuários por meio de uma lente e poderia responder a comandos de voz.
“Muitos consumidores consideraram o Google Glass desajeitado e compararam o produto a ciborgues”, diz Jannek Sommer, professor-associado do departamento de negócios e gestão da Universidade do Sul da Dinamarca. A primeira versão do smartwatch Samsung Galaxy Gear também enfrentou problemas, com sua publicidade que associava o dispositivo aos gadgets dos filmes de ficção científica.
“Aos poucos, a indústria percebeu que seu posicionamento estava errado”, diz Sommer, sem negar que a indústria ainda fracassa em fornecer ao consumidor uma experiência de valor prático de fato consistente.
Durante seu vídeo de estreia, o AI Pin, quando solicitado a calcular a quantidade de proteína em um punhado de amêndoas, declarou, com segurança, o conteúdo nutricional errado. Mais tarde, na apresentação, o dispositivo aconselhou erroneamente o melhor lugar para se ver o eclipse solar que se aproximava. Essas “alucinações” – nas quais um modelo de IA fornece informações falsas ou fabrica detalhes – são comuns a todos os chatbots e, de maneira semelhante, inviabilizaram o lançamento do Bard, o chatbot de IA do Google, no ano passado.
Mesmo que esses problemas sejam resolvidos, os dispositivos vestíveis de IA ainda enfrentam problemas de objetivo. Samsung, Google e outros fabricantes já implementaram funcionalidades alimentadas por IA em seus mais recentes modelos de smartphones, equipando-os com as mesmas ferramentas de produtividade dos dispositivos vestíveis de IA. Recentemente, a empresa alemã Deutsche Telekom apresentou um conceito de smartphone que depende exclusivamente de IA e não carrega quaisquer aplicativos.
Logo diremos aos dispositivos o que desejamos e eles decidirão quais aplicativos e plataformas usar para nos atender
“Você não terá de usar aplicativos diferentes para tarefas diferentes”, disse o ex-executivo-chefe da Microsoft Bill Gates, num blog. “Você simplesmente dirá ao seu dispositivo, em linguagem corriqueira, o que deseja fazer” e deixará que o dispositivo decida quais aplicativos, plataformas e informações são necessários para concluir a tarefa que você definiu.
Essa é a ideia que será colocada em prática preliminarmente pelo R1, da startup Rabbit, da Califórnia, descrito pelo fabricante como um “companheiro digital”. Meio parecido com um console de jogos portátil, o dispositivo, em vez de simplesmente conectar-se a um chatbot de IA, interage com os apps do seu telefone. A ideia, portanto, é que o R1 atue como uma interface completa para seus dispositivos – uma espécie de aplicativo central por meio do qual se controla o resto.
O valor dessa abordagem será visto quando o R1 for lançado, ainda este ano. Mas podemos esperar que dispositivos experimentais semelhantes o sigam. Sam Altman, executivo-chefe da OpenAI, empresa que criou o ChatGPT, já estaria em negociações com o ex-designer-chefe da Apple Jony Ive, para explorar ideias de hardware.
Seja qual for a forma que venham a assumir, os dispositivos de IA terão um trabalho difícil para competir com os retângulos de vidro globalmente conectados, hiperfuncionais e controlados intuitivamente que quase todos levamos no bolso. “Não quero acreditar que o smartphone seja o apogeu da tecnologia”, diz Lindlbauer. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Com que gadget eu vou’
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