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O Vietnã de Biden?

O apoio inflexível a Israel ameaça as chances de reeleição do presidente democrata, temem aliados

O Vietnã de Biden?
O Vietnã de Biden?
Contorcionismo. Na tentativa de não melindrar nenhum potencial eleitor, Biden defendeu ao mesmo tempo a livre manifestação e o império da ordem – Imagem: Timothy A. Clary/AFP e Oliver Contreras/Casa Branca Oficial
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Quando a estudante Lauren Brown escutou o tumulto, fogos de artifício incluídos, supôs que os ruídos viessem de casas de estudantes próximas. Então, por volta das 4 da manhã, ela ouviu helicópteros. Mais tarde acordou com notícias e imagens de um ataque violento de manifestantes pró-Israel a um acampamento montado em protesto contra a guerra em Gaza. “Foi difícil de assistir”, afirmou Brown, de 19 anos, caloura da Universidade da Califórnia, em Los ­Angeles, cujo dormitório ficava próximo do acampamento. “Eu me perguntei onde estaria a polícia? Vi postagens de gente falando ter sido atacada com gás lacrimogêneo e cassetetes, e que a segurança do campus apenas observava.”

Um grande contingente policial chegou e esvaziou à força o amplo acampamento na manhã da quinta-feira 2. Rojões foram lançados para dispersar a multidão reunida, e mais de 200 manifestantes foram presos. Depois disso, funcionários do ­campus foram vistos a recolher barracas destruídas e pedaços de madeira compensada pichados com spray e a jogar tudo em caçambas de lixo cinza. Cenas de tumulto parecidas ocorreram em cerca de 40 universidades e faculdades nos Estados Unidos, o que levou a confrontos com a polícia, detenções em massa e uma diretriz do presidente Joe Biden para restabelecer a ordem. A agitação tem se ampliado de costa a costa dos Estados Unidos em escala nunca vista desde os protestos contra a Guerra do Vietnã, nas décadas de 1960 e 1970.

Biden tem motivos para se preocupar, pois o assunto ameaça seus votos dos jovens, divide o Partido Democrata e dá aos republicanos de Donald Trump uma oportunidade para lançar denúncias de antissemitismo e retratar a América de Biden como um redemoinho descontrolado. Existem paralelos inevitáveis com 1968, um ano tumultuado por assassinatos e manifestações contra a guerra que levaram ao caos na Convenção Nacional Democrata em Chicago. Os democratas perderam a Casa Branca para o candidato republicano “da lei e da ordem”, Richard Nixon. Agora há temores de que a história se repita, enquanto os protestos contra a guerra convulsionam novamente os campi universitários e a Convenção Nacional Democrata novamente se dirige para ­Chicago. Biden enfrentará o candidato republicano “da lei e da ordem”, Donald Trump, nas eleições presidenciais em novembro.

O candidato enfrenta oposição no próprio partido por conta do aval à brutalidade de Netanyahu

Bernie Sanders, senador independente por Vermont, disse à CNN: “Estou pensando no passado, e outros fazem a comparação de que este pode ser o Vietnã de Biden”. Ao traçar paralelos com o presidente Lyndon Johnson, cujas consideráveis conquistas internas foram ofuscadas pela Guerra do Vietnã e que não tentou a reeleição em 1968, Sanders acrescentou: “Preocupa-me muito que o presidente ­Biden se coloque em uma posição na qual aliena não apenas os jovens, mas grande parte da base democrata, devido às suas opiniões sobre Israel e esta guerra”.

A guerra em Gaza começou quando militantes do Hamas atacaram Israel em 7 de outubro do ano passado e fizeram cerca de 1,2 mil vítimas, na maioria civis, além de capturar 240 reféns. A ofensiva retaliatória de Israel matou mais de 34,6 mil palestinos em Gaza, a maioria de mulheres e crianças. A ferocidade dessa resposta e o apoio “inflexível” dos EUA a Israel desencadeou protestos de estudantes da Universidade Columbia, em Nova York, que rapidamente se espalharam por outros campi em todo o país. Os estudantes construíram acampamentos em solidariedade a Gaza, exigiram um cessar-fogo e que as universidades se dissociassem de Israel. As manifestações foram geralmente pacíficas, embora alguns participantes tenham sido apanhados por câmeras a emitir comentários antissemitas e fazer ameaças violentas.

Os gestores universitários, que tentaram equilibrar o direito ao protesto com as queixas de violência e discurso de ódio, têm apelado cada vez mais à polícia para expulsar os manifestantes antes dos exames de fim de ano e das cerimônias de formatura. Mais de 2,3 mil detenções foram feitas nas últimas semanas, algumas durante confrontos violentos com a polícia, causando acusações de uso excessivo de força. Biden, que tem enfrentado pressão política de todos os lados sobre o conflito em Gaza, tentou emendar as coisas: “Não somos uma nação autoritária, onde silenciamos os cidadãos ou reprimimos a dissidência. Mas também não somos um país sem lei. Somos uma sociedade civil e a ordem deve prevalecer”. O presidente enfrenta oposição dentro do próprio partido, devido a seu forte apoio à ofensiva militar de Israel. Centenas de milhares de pessoas registraram versões de votos de protesto “descomprometidos” contra ele nas primárias presidenciais democratas.

Presságio? A morte de milhares de soldados no Vietnã empurrou os jovens para as ruas no fim dos anos 1960. O Partido Democrata acabaria derrotado – Imagem: Arquivo Nacional/EUA e Frank Wolfe/Acervo da Biblioteca Lyndon B. Johnson

Yaya Anantanang, organizadora estudantil da Universidade George ­Washington, em Washington, disse ao ­site Politico: “Minha mensagem é que não apoiamos Biden. Não capitulamos perante a política eleitoral liberal porque, francamente, a libertação dos palestinos não virá por meio de um presidente democrata, mas da organização e garantia de que haja total isenção em todas essas instituições”. Essas opiniões dão o alarme para aqueles que temem que mesmo uma pequena queda no apoio da coligação de Biden possa fazer toda a diferença numa eleição apertada.

Kerry Kennedy, filha de Robert F. ­Kennedy, morto a tiros enquanto concorria à Presidência em 1968, instou os manifestantes a apoiarem Biden, apesar de suas dúvidas. “Precisamos dos votos deles agora. Eles podem não adorar as políticas de Joe Biden, mas a opção não é entre Joe Biden e seu ideal. A opção é entre Joe Biden e Donald Trump, que vai instituir a proibição muçulmana no primeiro dia.”

Os republicanos, entretanto, procuram explorar a agitação para obter ganhos políticos. Eles acusaram Biden de ser brando com o que consideram um sentimento antissemita entre os manifestantes e que os democratas aprovam a “consciência social” no sistema educacional norte-americano. O governador republicano de New Hampshire, Chris Sununu, disse: “A crise que estamos vendo nos campi universitários é o resultado de as próprias faculdades não terem e não promoverem a educação certa, a discussão certa nas salas de aula, da maneira certa. Eles fazem esse jogo de consciência social em que não querem abordar os problemas”. Sununu acrescentou: “Eles criam um vácuo de informações. Os estudantes recebem informações e propagandas ruins. Estão realmente sendo usados por organizações terroristas estrangeiras para transmitir uma mensagem antiamericana e anti-israelense, o que é simplesmente horrível. Não é uma diferença de opinião. É uma desinformação completa”.

Imagens de confusão nos campi têm sido reproduzidas incansavelmente na Fox News e em outros meios de comunicação de direita, o que alimenta uma versão de instabilidade e ilegalidade sob Biden, ao mesmo tempo que atenua convenientemente a imagem negativa de Trump. Na terça-feira 30, o candidato republicano esteve num tribunal para seu julgamento secreto. A revista Time publicou uma entrevista na qual o ex-presidente expôs uma visão extremista de uma presidência imperial e a Flórida adotou uma proibição do aborto de seis semanas depois de Trump ter estimulado a derrubada da Lei Roe vs. Wade. Mas as telas de tevê foram dominadas pelos protestos.

Os republicanos exploram uma suposta instabilidade social sob o governo Biden

Ezra Levin, cofundador e codiretor-executivo do movimento progressista Indivisible, disse: “Todas essas histórias, qualquer uma delas teria possivelmente desqualificado um candidato presidencial numa eleição anterior, receberam uma fração da cobertura dos protestos contra o massacre de habitantes de Gaza perpetrado por Netanyahu. Isso é problemático para nós que queremos ver Joe ­Biden reeleito e queremos que os democratas vençam, porque cada dia que passamos a falar sobre essa guerra imoral que os dólares de impostos norte-americanos sustentam é um dia em que não falamos sobre o fascismo perigoso e rastejante que representa o Partido Republicano”.

Ainda assim os democratas esperam que, com o ano acadêmico perto do fim, os estudantes voltem para casa no verão e a energia se disperse. Donna Brazile, ex-presidente interina do Comitê Nacional Democrata, duvida que a questão seja decisiva em novembro. “Teremos uma surpresa todos os meses, e não podemos prever qual das muitas surpresas realmente definirá a eleição”, afirmou. “Há um mês era o aborto que iria definir a eleição. Agora são as manifestações nas universidades. No mês que vem será outra coisa.”

Brazile defendeu ainda o direito dos estudantes a protestar, como fizeram as gerações anteriores contra a Guerra do Vietnã, o apartheid sul-africano, a Guerra do Iraque e, durante a campanha eleitoral mais recente, a brutalidade policial. “Estive em vários campi universitários e a maioria deles está bastante pacífica. Estes são estudantes que usam seu direito da Primeira Emenda (da Constituição) para defender mudanças no Oriente Médio, e todo mundo deve ver claramente que existem regras. Apenas alguns deles ficaram fora de controle, porque, se alguém viola as regras ou infringe a lei, não tem o direito de fazer isso. É proibido.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Vietnã de Biden?’

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