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O Vietnã de Biden?
O apoio inflexível a Israel ameaça as chances de reeleição do presidente democrata, temem aliados


Quando a estudante Lauren Brown escutou o tumulto, fogos de artifício incluídos, supôs que os ruídos viessem de casas de estudantes próximas. Então, por volta das 4 da manhã, ela ouviu helicópteros. Mais tarde acordou com notícias e imagens de um ataque violento de manifestantes pró-Israel a um acampamento montado em protesto contra a guerra em Gaza. “Foi difícil de assistir”, afirmou Brown, de 19 anos, caloura da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, cujo dormitório ficava próximo do acampamento. “Eu me perguntei onde estaria a polícia? Vi postagens de gente falando ter sido atacada com gás lacrimogêneo e cassetetes, e que a segurança do campus apenas observava.”
Um grande contingente policial chegou e esvaziou à força o amplo acampamento na manhã da quinta-feira 2. Rojões foram lançados para dispersar a multidão reunida, e mais de 200 manifestantes foram presos. Depois disso, funcionários do campus foram vistos a recolher barracas destruídas e pedaços de madeira compensada pichados com spray e a jogar tudo em caçambas de lixo cinza. Cenas de tumulto parecidas ocorreram em cerca de 40 universidades e faculdades nos Estados Unidos, o que levou a confrontos com a polícia, detenções em massa e uma diretriz do presidente Joe Biden para restabelecer a ordem. A agitação tem se ampliado de costa a costa dos Estados Unidos em escala nunca vista desde os protestos contra a Guerra do Vietnã, nas décadas de 1960 e 1970.
Biden tem motivos para se preocupar, pois o assunto ameaça seus votos dos jovens, divide o Partido Democrata e dá aos republicanos de Donald Trump uma oportunidade para lançar denúncias de antissemitismo e retratar a América de Biden como um redemoinho descontrolado. Existem paralelos inevitáveis com 1968, um ano tumultuado por assassinatos e manifestações contra a guerra que levaram ao caos na Convenção Nacional Democrata em Chicago. Os democratas perderam a Casa Branca para o candidato republicano “da lei e da ordem”, Richard Nixon. Agora há temores de que a história se repita, enquanto os protestos contra a guerra convulsionam novamente os campi universitários e a Convenção Nacional Democrata novamente se dirige para Chicago. Biden enfrentará o candidato republicano “da lei e da ordem”, Donald Trump, nas eleições presidenciais em novembro.
O candidato enfrenta oposição no próprio partido por conta do aval à brutalidade de Netanyahu
Bernie Sanders, senador independente por Vermont, disse à CNN: “Estou pensando no passado, e outros fazem a comparação de que este pode ser o Vietnã de Biden”. Ao traçar paralelos com o presidente Lyndon Johnson, cujas consideráveis conquistas internas foram ofuscadas pela Guerra do Vietnã e que não tentou a reeleição em 1968, Sanders acrescentou: “Preocupa-me muito que o presidente Biden se coloque em uma posição na qual aliena não apenas os jovens, mas grande parte da base democrata, devido às suas opiniões sobre Israel e esta guerra”.
A guerra em Gaza começou quando militantes do Hamas atacaram Israel em 7 de outubro do ano passado e fizeram cerca de 1,2 mil vítimas, na maioria civis, além de capturar 240 reféns. A ofensiva retaliatória de Israel matou mais de 34,6 mil palestinos em Gaza, a maioria de mulheres e crianças. A ferocidade dessa resposta e o apoio “inflexível” dos EUA a Israel desencadeou protestos de estudantes da Universidade Columbia, em Nova York, que rapidamente se espalharam por outros campi em todo o país. Os estudantes construíram acampamentos em solidariedade a Gaza, exigiram um cessar-fogo e que as universidades se dissociassem de Israel. As manifestações foram geralmente pacíficas, embora alguns participantes tenham sido apanhados por câmeras a emitir comentários antissemitas e fazer ameaças violentas.
Os gestores universitários, que tentaram equilibrar o direito ao protesto com as queixas de violência e discurso de ódio, têm apelado cada vez mais à polícia para expulsar os manifestantes antes dos exames de fim de ano e das cerimônias de formatura. Mais de 2,3 mil detenções foram feitas nas últimas semanas, algumas durante confrontos violentos com a polícia, causando acusações de uso excessivo de força. Biden, que tem enfrentado pressão política de todos os lados sobre o conflito em Gaza, tentou emendar as coisas: “Não somos uma nação autoritária, onde silenciamos os cidadãos ou reprimimos a dissidência. Mas também não somos um país sem lei. Somos uma sociedade civil e a ordem deve prevalecer”. O presidente enfrenta oposição dentro do próprio partido, devido a seu forte apoio à ofensiva militar de Israel. Centenas de milhares de pessoas registraram versões de votos de protesto “descomprometidos” contra ele nas primárias presidenciais democratas.
Presságio? A morte de milhares de soldados no Vietnã empurrou os jovens para as ruas no fim dos anos 1960. O Partido Democrata acabaria derrotado – Imagem: Arquivo Nacional/EUA e Frank Wolfe/Acervo da Biblioteca Lyndon B. Johnson
Yaya Anantanang, organizadora estudantil da Universidade George Washington, em Washington, disse ao site Politico: “Minha mensagem é que não apoiamos Biden. Não capitulamos perante a política eleitoral liberal porque, francamente, a libertação dos palestinos não virá por meio de um presidente democrata, mas da organização e garantia de que haja total isenção em todas essas instituições”. Essas opiniões dão o alarme para aqueles que temem que mesmo uma pequena queda no apoio da coligação de Biden possa fazer toda a diferença numa eleição apertada.
Kerry Kennedy, filha de Robert F. Kennedy, morto a tiros enquanto concorria à Presidência em 1968, instou os manifestantes a apoiarem Biden, apesar de suas dúvidas. “Precisamos dos votos deles agora. Eles podem não adorar as políticas de Joe Biden, mas a opção não é entre Joe Biden e seu ideal. A opção é entre Joe Biden e Donald Trump, que vai instituir a proibição muçulmana no primeiro dia.”
Os republicanos, entretanto, procuram explorar a agitação para obter ganhos políticos. Eles acusaram Biden de ser brando com o que consideram um sentimento antissemita entre os manifestantes e que os democratas aprovam a “consciência social” no sistema educacional norte-americano. O governador republicano de New Hampshire, Chris Sununu, disse: “A crise que estamos vendo nos campi universitários é o resultado de as próprias faculdades não terem e não promoverem a educação certa, a discussão certa nas salas de aula, da maneira certa. Eles fazem esse jogo de consciência social em que não querem abordar os problemas”. Sununu acrescentou: “Eles criam um vácuo de informações. Os estudantes recebem informações e propagandas ruins. Estão realmente sendo usados por organizações terroristas estrangeiras para transmitir uma mensagem antiamericana e anti-israelense, o que é simplesmente horrível. Não é uma diferença de opinião. É uma desinformação completa”.
Imagens de confusão nos campi têm sido reproduzidas incansavelmente na Fox News e em outros meios de comunicação de direita, o que alimenta uma versão de instabilidade e ilegalidade sob Biden, ao mesmo tempo que atenua convenientemente a imagem negativa de Trump. Na terça-feira 30, o candidato republicano esteve num tribunal para seu julgamento secreto. A revista Time publicou uma entrevista na qual o ex-presidente expôs uma visão extremista de uma presidência imperial e a Flórida adotou uma proibição do aborto de seis semanas depois de Trump ter estimulado a derrubada da Lei Roe vs. Wade. Mas as telas de tevê foram dominadas pelos protestos.
Os republicanos exploram uma suposta instabilidade social sob o governo Biden
Ezra Levin, cofundador e codiretor-executivo do movimento progressista Indivisible, disse: “Todas essas histórias, qualquer uma delas teria possivelmente desqualificado um candidato presidencial numa eleição anterior, receberam uma fração da cobertura dos protestos contra o massacre de habitantes de Gaza perpetrado por Netanyahu. Isso é problemático para nós que queremos ver Joe Biden reeleito e queremos que os democratas vençam, porque cada dia que passamos a falar sobre essa guerra imoral que os dólares de impostos norte-americanos sustentam é um dia em que não falamos sobre o fascismo perigoso e rastejante que representa o Partido Republicano”.
Ainda assim os democratas esperam que, com o ano acadêmico perto do fim, os estudantes voltem para casa no verão e a energia se disperse. Donna Brazile, ex-presidente interina do Comitê Nacional Democrata, duvida que a questão seja decisiva em novembro. “Teremos uma surpresa todos os meses, e não podemos prever qual das muitas surpresas realmente definirá a eleição”, afirmou. “Há um mês era o aborto que iria definir a eleição. Agora são as manifestações nas universidades. No mês que vem será outra coisa.”
Brazile defendeu ainda o direito dos estudantes a protestar, como fizeram as gerações anteriores contra a Guerra do Vietnã, o apartheid sul-africano, a Guerra do Iraque e, durante a campanha eleitoral mais recente, a brutalidade policial. “Estive em vários campi universitários e a maioria deles está bastante pacífica. Estes são estudantes que usam seu direito da Primeira Emenda (da Constituição) para defender mudanças no Oriente Médio, e todo mundo deve ver claramente que existem regras. Apenas alguns deles ficaram fora de controle, porque, se alguém viola as regras ou infringe a lei, não tem o direito de fazer isso. É proibido.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Vietnã de Biden?’
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