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Desafio de todos
Para superar o elevado déficit de moradias no Brasil, são indispensáveis parcerias entre os governos e o setor privado
Especialmente desenhado para equacionar ou mitigar os problemas de moradia no Brasil, o programa Minha Casa, Minha Vida precisa incorporar outras forças dinâmicas da sociedade brasileira para atingir seus objetivos. Motivo: “Em algumas metrópoles, principalmente na cidade de São Paulo, estamos vivendo uma verdadeira emergência habitacional”, aponta Raquel Rolnik, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. “Essa emergência habitacional é mais que uma crise, pois existe uma quantidade de necessidades habitacionais não satisfeitas que marca a história da urbanização no Brasil.”
Desde que a população brasileira migrou do campo para as cidades, observa Rolnik, os problemas de acesso à moradia digna se agravaram, pois os trabalhadores de menor renda, de uma forma geral, não tinham condições financeiras de arcar com o elevado custo dos aluguéis ou dos imóveis disponíveis à venda. “Por isso, historicamente, a ‘solução’ foi a autopromoção da moradia, pelas próprias pessoas, pelas próprias comunidades, em áreas que estavam vazias e desocupadas, seja através de ocupações clandestinas, seja por meio da compra de áreas que não eram previamente infraestruturadas e preparadas para receber moradias”, analisa.
Estados e municípios podem complementar os subsídios do Minha Casa, Minha Vida. “Assim, mais famílias conseguirão pagar o valor de entrada dos imóveis”, diz Araújo, da consultoria Brain
O resultado, de acordo com os estudos da arquiteta e urbanista, é que temos hoje, nas cidades, uma imensa área em situação bastante precária, com pouquíssimos recursos disponíveis. “Ou seja, lugares que foram se consolidando e hoje precisam de robustos investimentos públicos para melhorar as condições de quem já mora lá.” Com o súbito crescimento da população em situação de rua verificado nos últimos anos, a situação ganhou contornos de uma “emergência habitacional”, avalia a especialista. “A população de rua sempre existiu, tem longa história no Brasil, mas não na dimensão que vemos agora. Em São Paulo, temos 50 mil indivíduos pernoitando debaixo de viadutos e marquises. É contingente gigantesco, maior que a população de muitos municípios brasileiros. E não adianta oferecer um programa de acesso à casa própria via crédito habitacional para quem está com a vida completamente desestruturada. Então, a segunda dimensão, que tem a ver com a população de rua, mas não apenas com ela, é entender que uma política habitacional, para atender os que mais precisam, os mais necessitados, não se restringe ao crédito habitacional.”
Maior programa habitacional da história do Brasil, o Minha Casa, Minha Vida acumula 7,7 milhões de moradias contratadas ao longo de seus 15 anos de existência e deve contratar outros 2 milhões de moradias até 2026. É um avanço inegável, mas as necessidades são ainda maiores. Segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional brasileiro era de 6,2 milhões de domicílios em 2022. Mais da metade desse total refere-se ao chamado aluguel oneroso, quando ele compromete mais de 30% da renda familiar. Além disso, existe a carência relacionada às precárias condições das residências, por vezes instaladas em áreas de risco, como mananciais e encostas. Do total de domicílios em déficit habitacional em 2022, 74,5% deles se enquadravam na faixa de renda até dois salários mínimos, exatamente o público atendido pela Faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida. O programa federal também oferece subsídios para o financiamento da casa própria às famílias com rendimentos até 4,4 mil reais e taxas de juros diferenciadas para famílias com renda até 8 mil reais. Embora os financimentos abranjam todas as faixas de renda do programa, ressalta-se que o foco do Minha Casa, Minha Vida tem sido a expansão do acesso ao crédito especialmente para a população de baixa renda, facilitando a aquisição de moradias. Com o novo desenho do programa, as taxas de juros para famílias que ganham até 2 mil reais são as menores da história, com valor de 4,4% ao ano.
O Censo de 2022 desnuda a complexidade do problema habitacional no Brasil. São 11,4 milhões de domicílios vagos (quase o dobro do déficit), um salto de 87% em relação aos 6,07 milhões de 2010. “Isso mostra que o problema não é a falta de unidades, mas o modelo de produção capitalista de moradia, que priva as maiorias do básico para sobreviver nas cidades”, avalia Rud Rafael, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. Rafael aponta algumas alternativas inovadoras e transformadoras gestadas dentro do próprio governo federal. É o caso da criação da Secretaria Nacional de Periferias, vinculada ao Ministério das Cidades, para ampliar a visão sobre a urbanização e intervir em áreas de ocupação consolidada.

Políticas públicas. Sem robustos investimentos estatais, não há como garantir o acesso dos mais pobres à moradia digna no Brasil, alerta a urbanista Raquel Rolnik – Imagem: Marcos Santos/USP Imagens e iStockphoto
A Secretaria Nacional de Periferias, possui uma iniciativa inédita, em fase final de elaboração, denominada Periferia Viva. O projeto busca impulsionar o desenvolvimento dos territórios periféricos, com impacto direto sobre cerca de 16 milhões de moradores. Ao todo, o Brasil tem, hoje, 11.403 favelas, o que simboliza um total de 6,6 milhões de domicílios periféricos, segundo uma prévia dos dados do Censo de 2022. No entanto, o projeto deve extrapolar as fronteiras desses territórios e, com isso, pode chegar a outros 10 milhões de domicílios brasileiros, com mais de 36 milhões de habitantes, estima a pasta. O objetivo do programa é criar novas políticas públicas voltadas à saúde, educação, segurança, moradia, segurança alimentar e lazer, e integrá-las aos recursos mobilizados pelos próprios moradores por meio de associações de bairro e movimentos sociais.
Outras iniciativas para somar forças visando contribuir para diminuir o déficit de mordias no País também podem ser adotadas em níveis, sobretudo, estadual e municipal, defende Fábio Tadeu Araújo, CEO da Brain Inteligência Estratégica, consultoria brasileira que atua em parceria com empreendedores do mercado imobiliário. O programa Minha Casa, Minha Vida direcionou recursos do FGTS para financiamentos imobiliários, mas os estados e municípios também estão se movimentando para contribuir no esforço de superar o elevado déficit habitacional brasileiro, observa. “É o caso, por exemplo, de Paraná e São Paulo, além da capital paulista e de Manaus, que têm programas de subsídio à moradia, nos quais se complementa o subsídio do Minha Casa, Minha Vida com aportes do estado ou do município, porque a maior barreira de compra das famílias é a entrada”, comenta. “Desse modo, diminuindo o valor de entrada, é possível financiar mais famílias. Esse apoio, tanto estadual quanto municipal, tem sido muito bem-sucedido e essencial para o desenvolvimento do programa. E, no caso também da Faixa 1, quando o governo do estado ou do município entra com obras de infraestrutura nas regiões onde serão construídos empreendimentos do programa federal. Essa parceria é essencial.”
A reurbanização de territórios periféricos faz parte dos planos do governo federal para melhorar as condições de vida da população
Clausens Duarte, vice-presidente da Câmara Brasileira da Indústria de Construção (CBIC), acrescenta que seriam necessários 961 bilhões de reais de investimentos para solucionar a carência de domicílios no País. É uma situação desafiadora, mas os recursos podem ser mobilizados a partir de parcerias com a iniciativa privada. “O projeto de garantir moradia digna para todos é do País e o setor privado pode contribuir com os recursos necessários para enfrentarmos esse desafio. Mas é preciso maior segurança empresarial, um ambiente de negócios mais atrativo aos investimentos.”
Rolnik alerta, porém, ser preciso conjugar os investimentos privados com políticas públicas que ampliem, de fato, o acesso da população mais vulnerável à moradia digna. “Veja o exemplo da cidade de São Paulo. Aqui, a legislação urbanística, o plano diretor, produziu numerosos incentivos para a produção de unidades residenciais. Como resultado tivemos, nos últimos anos, um recorde de lançamentos daquilo que o mercado chama de habitação do segmento econômico, 400 mil unidades para cima. Mas a situação habitacional de São Paulo piorou. O mercado está produzindo ativos financeiros, estúdios para locação em Airbnb e em plataformas para aluguel, gerando entesouramento de capital financeiro, mas não está melhorando a situação da habitação”. •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desafio de todos’