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IA verde-amarela

Enquanto o Senado prepara a regulação da Inteligência Artificial, o governo fomenta projetos nacionais

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Corrida. Empresas dos Estados Unidos e da China largaram na dianteira. Os países desenvolvidos perseguem dois objetivos: dominar a tecnologia de ponta no setor e proteger seus cidadãos das ameaças exteriores. O Brasil tem um longo caminho a percorrer – Imagem: Sakis Mitrolidis/AFP e Joan Cros/NurPhoto/AFP
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Esqueçam o combate à fome, o aquecimento global e a crise sistêmica. A maioria dos empresários, políticos e cientistas anda mesmo obcecada com as possibilidades – e os entraves – da Inteligência Artificial. As principais economias do planeta já iniciaram a corrida para dominar a tecnologia e proteger suas populações das ameaças externas. Soberania e segurança cibernética guiam as decisões em diferentes níveis e em distintas nações.

Alguns passos atrás na corrida tecnológica dominada por empresas dos Estados Unidos e da China, o Brasil empenha-se em três frentes. A comissão especial criada no Senado apresentou, em 24 de abril, o relatório preliminar da regulamentação da IA no País. A expectativa é de que o texto elaborado pelo senador Eduardo Gomes, do PL, seja levado a plenário até o fim de maio. No Executivo, está em fase final de gestação no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação um plano nacional de uso da tecnologia. Por determinação do presidente Lula, a proposta deverá ser finalizada a tempo de ser apresentada na Assembleia-Geral da Nações Unidas, em setembro. No quesito investimentos, os recursos passam prioritariamente pela Financiadora de Estudos e Projetos, um montante próximo do 1 bilhão de reais. “Está lançado o desafio. O Brasil não tem de ficar esperando ajuda de outros países ou vê-los se desenvolvendo mais do que nós em Inteligência Artificial”, afirmou Lula em reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.

A expansão da pesquisa na área é um dos pilares da Nova Política Industrial

O relatório em discussão no Senado prevê a criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de IA, a ser gerido por um comitê formado por agências reguladoras, órgãos estatais de regulação e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, entre outros. O projeto deixa a cargo do Executivo a escolha da autoridade competente para comandar o futuro sistema. “O ponto forte do relatório é o diálogo. Foram, aproximadamente, 150 audiências e uma série de fóruns e debates”, diz o senador Eduardo Gomes. Nas próximas duas semanas, o relator vai colher as últimas sugestões dos colegas e de grupos envolvidos na discussão antes de o texto ser enviado à presidência do Senado para posterior encaminhamento. “A Comissão teve toda a condição de consultar o Executivo, o Judiciário, centenas de organizações e organismos. É importante a participação democrática da sociedade”, acrescenta Gomes.

Segundo o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, “o fato de o relator ter sido líder do governo anterior mostra que o tema não separa governo e oposição”. Ainda assim, a predisposição do senador bolsonarista ao diálogo e o aparente acordo em torno de um “tema de Estado” não eliminam as muitas dúvidas e divergências em termos regulatórios ainda existentes em relação à IA. Detalhes que certamente provocarão divergências no Senado e na Câmara, para onde o projeto retornará. Entre eles, a política de classificação e responsabilização pelos conteúdos publicados nas redes sociais. Para eventuais infratores, o relatório de Gomes propõe a aplicação de multas que podem chegar a 50 milhões de ­reais e a “suspensão ou proibição do desenvolvimento, fornecimento ou operação de sistemas de Inteligência Artificial”.

Entre os especialistas e autoridades consultados por Gomes figura Marian Graf, embaixadora da União Europeia no Brasil. Em março, o Parlamento Europeu tomou a dianteira no Ocidente ao aprovar um abrangente conjunto de regras que têm como norte a preservação de valores fundamentais diante dos perigos da IA. “A Lei de Inteligência Artificial visa proteger os direitos fundamentais, a democracia, o Estado de Direito e a sustentabilidade ambiental contra a IA de alto risco, promovendo a inovação e tornando a Europa líder nesse domínio”, descreve o texto aprovado.

Vanguarda. No Ocidente, a União Europeia foi a primeira a criar uma legislação para o uso da Inteligência Artificial – Imagem: Mathieu Cugnot/União Européia

A legislação europeia proíbe a captação de rostos para a criação de bases de dados de reconhecimento facial e torna obrigatória a adoção de um “mecanismo de transparência” sobre o uso de direitos autorais. Também impõe a “supervisão humana” em aplicações consideradas “críticas”, como educação, saúde, serviços públicos, processos judiciais e gestão de fronteiras. Como se trata de uma tecnologia incipiente, os avanços na pesquisa seguem em ritmo imprevisível e pode rapidamente tornar obsoletas as regras recém-aprovadas, reconhece o deputado romeno Dragos Tudorache, relator do projeto. “Precisamos ficar atentos à evolução dessa tecnologia para responder aos novos desafios que podem surgir.”

No caso do Brasil, a opção é investir. O presidente da Finep, Celso ­Pansera, ressalta que o desenvolvimento da IA é um dos pilares da nova política industrial. “A Finep tem buscado ampliar o apoio ao segmento. Em 2023, cerca de 150 projetos receberam recursos, com a concessão de mais de 837 milhões de reais em crédito e aportes não reembolsáveis no desenvolvimento ou adoção da IA por empresas e institutos de pesquisa nacionais.” Um dos programas é o ­Startups IA, focado na articulação entre empresas nascentes, médias e grandes para o desenvolvimento conjunto de soluções tecnológicas. A chamada pública permitiu a contratação de 40 projetos, com a concessão de mais de 70 milhões de reais.

Outro programa, na terceira fase de execução e com recursos de 80 milhões de reais, é o Soluções de IA para o Poder Público, parceria entre Finep, MCTI, Ministério da Gestão e Escola Nacional de Administração Pública. Alguns dos projetos contratados visam resolver tarefas como a análise de processos de ressarcimento ao SUS pela Agência Nacional de Saúde, a avaliação de autorizações de funcionamento de empresas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a identificação de tendências tecnológicas e de mercado para o Ministério da Agricultura, a certificação de pescadores para a Secretaria da Pesca e a modernização do sistema de atendimento ao público no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

É preciso dar muitos passos para o Brasil aproximar-se dos países líderes, diz Pansera, da Finep

Lançada em fevereiro, a terceira rodada tem previsão de apoio a nove projetos para atender a demandas do INSS, da Superin­tendência da Zona Franca de Manaus, da Comissão de Valores Mobiliários e do Instituto Nacional de Metrologia. “Começam a aparecer os primeiros resultados. Conforme relato dos órgãos, esses projetos apoiados apresentam capacidade de dobrar a produtividade das equipes técnicas, aumentando, por consequência, a qualidade e reduzindo os custos da prestação de serviços à sociedade”, diz Pansera.

Ainda com a chamada aberta, o programa Mais Inovação Tecnologias Digitais tem recursos disponíveis de 170 milhões de reais ao apoio a um conjunto de temas prioritários da política industrial, dentre eles a Inteligência Artificial Generativa. “Esse programa apoia o desenvolvimento de grandes modelos de linguagem, de propósito geral ou específico, para o português do Brasil, buscando assim dotar o País de infraestruturas avançadas no tema.” Há ainda chamadas abertas voltadas aos institutos de Ciência e Tecnologia para apoio a temas críticos do ambiente digital, entre eles as infraestruturas com grande capacidade computacional de processamento de modelos mais avançados. “Dada a importância do tema, deveremos ter novas chamadas lançadas ao longo de 2024”, adianta o presidente da Finep.

Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e integrante do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, o ex-ministro Renato Janine Ribeiro lembra que Lula fez uma exortação para o CTT oferecer “um projeto forte, bom, competitivo e de qualidade” sobre IA antes da Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, marcada para o início de junho, em Brasília. Neste caso, entretanto, as discussões são incipientes. “Nas reuniões do CTT, ainda não senti um foco muito claro. As declarações foram muito bem preparadas, de gente altamente qualificada, sem dúvida, mas não está claro, exatamente, o que é a Inteligência Artificial para quem seja leigo. De modo geral, as explanações se concentraram nos especialistas, falta fazer a tradução desse pleito da área, vamos dizer, científica e tecnológica, em termos políticos, para que possa constituir um projeto importante para o Brasil”, afirma Ribeiro.

Frentes. Gomes é o relator no Senado do PL da IA. Pansera, da Finep, coordena no governo os investimentos em pesquisa – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag.Senado e Luis Macedo/Ag. Câmara

Vários pontos da IA, prossegue o presidente da SBPC, precisam ser esclarecidos. “Ela está sendo utilizada de muitas maneiras, mas sem que o conjunto da população tenha noção precisa do que se trata. Falo, inclusive, dos cientistas que não trabalham nessa área. Tem faltado aos cientistas da Inteligência Artificial uma tradução melhor para seus próprios colegas sobre o papel dessa tecnologia.” O País tem capacidade, mas não pode dormir no ponto, insiste. “Tudo isso ainda vai ­expandir-se­ bastante e o Brasil tem de discutir essas questões. Em especial, a comunidade científica e tecnológica voltada a esse ponto precisa discutir mais com a sociedade para persuadi-la da importância de investimentos nessa área.”

O Brasil, diz Pansera, tem desenvolvido importantes capacidades em IA. Ele faz, no entanto, uma ressalva: “Temos centenas de companhias desenvolvendo tecnologias relevantes, desde ­startups até médias e grandes. Há diversas empresas começando a adotar IA em suas rotinas de trabalho e temos institutos de pesquisa e pesquisadores relevantes. Apesar desse ecossistema em expansão, é necessário dar muitos passos para nos aproximar dos países líderes”. •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘IA verde-amarela’

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