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Três Marias contra Salazar

Novas Cartas Portuguesas é um símbolo do espírito da Revolução dos Cravos, que acaba de completar 50 anos

Três Marias contra Salazar
Três Marias contra Salazar
Combate. Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa saem juntas do tribunal onde foram levadas a julgamento, na década de 1970 – Imagem: Acervo/Centro de Documentação 25 de Abril
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O que pode a literatura? O questionamento está no centro de Novas Cartas Portuguesas. As escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa reconheciam a ousadia de sua proposta, uma obra escrita a seis mãos femininas, em pleno regime salazarista em Portugal.­ No prefácio à edição britânica, elas explicam: “O QUE está no livro não pode ser dissociado de COMO ele surgiu”.

A composição é, no mínimo, curiosa. O vasto material constitui um conjunto fragmentário, que abarca diferentes gêneros: ensaio, conto, poesia e epístolas reunidos durante nove meses – gestação é um termo propício para o processo. Mais que uma defesa da autonomia (ou anarquia) das formas literárias, o arranjo é um exercício democrático.

Novas Cartas Portuguesas traduz, em termos estéticos, uma obra que se propõe a desafiar um regime ditatorial. O Estado Novo português foi o plano de fundo da criação do livro. Desde 1933, a situação política de Portugal era marcada pela repressão que tinha como figura principal António de Oliveira Salazar.

Em 1971, a censura atinge as autoras das Novas Cartas, conhecidas como as Três Marias. Nascidas em Lisboa, elas se deparam com a perseguição da ideologia da “moral e dos bons costumes”. Maria Teresa Horta, em especial, teve seu livro de poemas Minha Senhora de Mim (1971) embargado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide).

Surge assim a ideia de oferecer ao público uma obra contestadora . Horta não andava só. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa juntaram-se à empreitada. Os bastidores da escrita de Novas Cartas Portuguesas são iluminados na edição da Todavia por um ótimo prefácio da escritora Tatiana Salem Levy – o volume conta ainda com orelha assinada por Dulce Maria Cardoso.

As Três Marias questionam a noção de “autoria”. Seus textos não são assinados, indo contra à ideia de literatura como resultado de um gênio individual e abraçando um ideal de coletividade. Elas partem de Cartas Portuguesas, romance epistolar do século XVII que contém cinco cartas de amor da freira Mariana­ ­­Alcoforado ao oficial Noël Bouton de Chamilly. Nelas, transparece o lamento e a clausura da jovem Mariana.

Novas Cartas não é a simples repetição desses temas. A obra, sobretudo, os subverte. As autoras dão destaque a motes como o isolamento, a separação, os preconceitos, a culpa, o erotismo e a moralidade. A condição da mulher dentro do patriarcado é dissecada por meio de uma escrita afiada, com tom tragicômico.

Sororidade é um termo que tem acalorado os ânimos dentro do feminismo do século XXI. De modo geral, a discussão gira em torno das interseccionalidades dentro da suposta “irmandade feminina”. Entretanto, ele é um conceito-chave dentro das Novas Cartas Portuguesas, que acena para a possibilidade de uma comunhão efetiva entre as mulheres.

Novas Cartas Portuguesas. Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Todavia (352 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

O diálogo com Cartas Portuguesas evidencia também a questão da autoria e o debate entre realidade e ficção. Mariana Alcoforado foi uma freira portuguesa, reclusa em um convento de Beja. O escândalo em torno de seu romance com o Cavaleiro de Chamilly também é verídico. Contudo, enquanto alguns pesquisadores atribuem a escrita das cartas a Mariana, outros questionam a sua autenticidade.

Em Novas Cartas Portuguesas a vida da freira é propositalmente ficcionalizada. Marianas, Marias, Joanas. Múltiplas personagens povoam as páginas do livro. Muitas vezes dividem um mesmo nome, mas têm diferentes histórias, vivem em diferentes tempos e enfrentam diferentes dilemas.

A originalidade do conteúdo das Novas Cartas é acompanhada por uma forma autêntica, capaz de refletir a singularidade estética do livro. A obra levanta outra reflexão. A “novidade” nem sempre vem do ineditismo, mas da subversão de modelos antigos. O velho transforma-se, assim, no novo.

Com a perseguição salazarista, as autoras foram a julgamento. Elas receberam o apoio de nomes como Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. Na capa da edição da Todavia vemos uma foto das Três Marias na saída do tribunal. A imagem transparece a união do trio – como na epígrafe da coletânea, que une o título de seus mais célebres livros.

A tecitura é uma das principais imagens de Novas Cartas Portuguesas: “Mas em teias seremos, se preciso, as três, aranhas astuciosas fiando a nossa arte, vantagem, nossa liberdade ou ordem”. Mote literário desde a Odisseia de ­Homero, o fiar tem caráter subversivo. Por séculos, a atividade foi vista apenas como uma virtude feminina. Por outro lado, ela é um símbolo da resistência das mulheres – um saber imaterial.

Em tempos em que a censura a livros voltou a nos rondar, Novas Cartas Portuguesas tem muito a nos dizer. Na astronomia, as Três Marias são estrelas cujo poderoso brilho serve como modo tradicional de orientação. Da mesma forma, Maria Isabel, Maria Teresa e Maria ­Velho são guias de uma literatura política e de valor estético. Elas afirmam escrever “por” e não “contra” um propósito.

O resultado é um texto combativo e belo, visto como um símbolo da Revolução dos Cravos – quando, em abril de 1974, Portugal derruba o salazarismo e caminha rumo à democracia. Voltamos à pergunta: mas o que pode a literatura? A definição não está apenas no conteúdo da obra. Novas Cartas Portuguesas é reflexo desse questionamento. Ou a resposta. •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Três Marias contra Salazar’

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