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Fúria cega

Para vingar a morte de jovem israelense, colonos judeus disseminam o terror em vilarejos palestinos na Cisjordânia

Fúria cega
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Terroristas? Sob ocupação israelense desde 1967, o território não é controlado pelo Hamas ou por qualquer outro grupo extremista – Imagem: Zain Jaafar/AFP
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Na manhã de 12 de abril, Binyamin Achimair, de 14 anos, reuniu as ovelhas na fazenda Gal Yosef, um posto avançado israelense na Cisjordânia ocupada, e as levou para pastar antes do início do Shabat, ao pôr do sol. Ele não voltou. Quando o rebanho regressou sem ele, o exército e a polícia israelenses iniciaram uma ampla busca. Cerca de 24 horas depois, o corpo do menino foi encontrado por um drone, e as autoridades israelenses consideraram sua morte um ataque terrorista.

Os colonos da região não esperaram para conhecer o destino de Achimair antes de buscar vingança. Naquela tarde de sexta-feira e no dia seguinte, as ­aldeias palestinas vizinhas – Beitin, Duma e ­Al-Mughayyir – foram atacadas por centenas de israelenses armados, num episódio sem precedentes de violência dos colonos que deixou dois mortos – Omar Hamed, de 17 anos, e Jihad Abu Aliya, de 25 anos – e 45 pessoas feridas. Dezoito foram baleadas com munição real, incluindo uma menina de 17 anos, atingida nas duas pernas.

Na segunda-feira 15, cerca de 50 colonos atacaram ­Aqraba, perto de Nablus, e mataram ­Mohammed Bani Jame, de 21 anos, e ­Abdulrahman Bani Fadel, de 30 anos. Durante os tumultos, estradas foram bloqueadas, 60 casas e empresas e mais de cem carros foram incendiados, centenas de ovelhas mortas ou roubadas, segundo socorristas e grupos de direitos humanos.

Em Al-Mughayyir, um carro de bombeiros mobilizado para extinguir as chamas no sábado também foi atacado, causando a fuga dos profissionais. O veículo foi incendiado mais tarde. Um vídeo feito pelo jornalista Mohammed ­Turkman mostra soldados das Forças de Defesa de Israel a pé, bem como em blindados de patrulha, que nada fazem para impedir os ataques. A FDI não respondeu aos pedidos de comentários do Observer.

Em uma visita a Al-Mughayyir e B­eitin na quinta-feira 18, os moradores ainda se recuperavam dos acontecimentos do fim de semana, limpando a fuligem e a fumaça das casas em ruínas e usando uma empilhadeira para remover veículos queimados. Vários homens que tentaram repelir os colonos atirando pedras estavam enfaixados ou mancando, devido a ferimentos de bala, e as crianças, traumatizadas. Vivendo em casas de parentes superlotadas, elas estavam incomumente quietas.

Mohammed e Rania Abu Aliya, um jovem casal de Al-Mughayyir que espera o primeiro filho, foram estoicos, brincando sobre sua fuga por um triz. Quando os colonos israelenses começaram a descer as colinas que cercam a aldeia, Rania fugiu para a casa dos pais, enquanto Mohammed ficou no andar de baixo para defender a casa e a oficina mecânica da família.

Cinco homens armados e mascarados tentaram, mas não conseguiram, forçar a entrada no apartamento de cima. Incendiaram, então, a oficina. Um deles abordou Mohammed depois que ele conseguiu apagar o incêndio, colocou uma pistola em sua cabeça e puxou o gatilho: ou ela estava com defeito ou não estava carregada. Eles retornaram no sábado, desta vez incendiando com sucesso a oficina e jogando coquetéis molotov pelas janelas do segundo andar.

“É rir para não chorar”, disse Rania, de 24 anos. Suas mãos e os pés com sandálias estavam sujos de cinzas e fuligem, depois de dias limpando os danos causados pelo fogo no andar de cima. “Um engenheiro veio ver a casa e disse que não é segura, mas não temos para onde ir. Para onde iríamos? Nenhum lugar está a salvo dos colonos.”

A violência dos colonos não é um fenômeno novo na Área C, os 60% da Cisjordânia sob controle civil e militar ­israelense. Muitos dos cerca de 700 mil israelenses que se mudaram para o território e para Jerusalém Oriental desde o início da ocupação, em 1967, são motivados pelo que consideram uma missão religiosa: restaurar a terra histórica de Israel ao povo judeu.

Os ataques foram obscurecidos pela eclosão simultânea das primeiras hostilidades diretas entre Israel e Irã

As comunidades de assentamentos são consideradas ilegais sob o direito internacional e um dos maiores obstáculos à solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino, que dura 76 anos. Postos avançados, como a fazenda onde Achimair trabalhava, também são assentamentos considerados ilegais pela lei israelense.

Devido ao processo de paz emperrado e à constante migração à direita da política em Israel, as apreensões de terras e os ataques violentos na Área C, destinados a forçar os palestinos a abandonar suas casas, agravaram-se nos últimos anos. A eleição de figuras da extrema-direita do movimento de colonos para cargos no governo e no gabinete israelense, no fim de 2022, marcou um ponto de virada que logo se manifestou num ataque sem precedentes à cidade de Huwara, em fevereiro de 2023.

Desde 7 de outubro de 2024, a violência dos colonos em toda a Cisjordânia intensificou-se, deslocando aldeias inteiras pela primeira vez, e as FDI efetuam ataques quase todas as noites contra células do Hamas e da Jihad Islâmica palestina, bem como contra brigadas locais em Jenin, Nablus e Tulkarem. Cerca de 466 palestinos foram mortos na Cisjordânia nos últimos seis meses, entre eles combatentes armados, bem como 13 israelenses, incluindo dois membros das forças de segurança de Israel.

A rápida deterioração da situação na Cisjordânia foi em grande parte ofuscada pelo devastador custo humano da guerra em Gaza. A gravidade da violência chocante da semana passada foi obscurecida pela eclosão simultânea das primeiras hostilidades diretas entre Israel e Irã.

Mas os colonos israelenses na Cisjordânia estão mais organizados, mais armados e operam em maior número do que nunca, a ponto de agora se assemelharem a milícias que agem quase impunemente. Apenas 3% dos processos policiais abertos sobre a violência dos colonos desde 2005 terminaram em condenação. Muitos desses mesmos atacantes hoje empunham rifles automáticos M16, já que o ministro da segurança nacional de ­Israel, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, decidiu atenuar as restrições ao porte de armas para judeus após o 7 de outubro.

Política de Estado. As Forças de Defesa de Israel acobertam os crimes praticados por colonos judeus na Cisjordância – Imagem: iStockphoto e Exército de Israel/AFP

Nos últimos seis meses, os EUA e a União Europeia sancionaram ­indivíduos envolvidos na violência dos colonos e suas fontes de financiamento e apoio, em reação a autoridades como Ben-Gvir, que atiçam as chamas. Até o ataque do Hamas no ano passado e a subsequente guerra em Gaza, o conflito israelo-palestino ocupava um lugar tão baixo na agenda internacional que tal medida seria impensável. Mas a violência na Cisjordânia só está piorando.

Na casa de Hamed, em Beitin, os pais e quatro irmãos de Omar, o jovem de 17 anos que foi baleado na cabeça por colonos na sexta-feira, lamentavam a perda do caçula da família. Seu último trabalho escolar, um projeto de carpintaria inacabado, estava na porta da frente.

Omar jogava videogame na casa de sua tia quando os colonos começaram a cercar as entradas da aldeia na noite de sexta-feira, e foi para a estrada principal que leva a Beitin com cerca de 20 outros adolescentes e homens na tentativa de impedir a entrada de ao menos 50 colonos. Um israelense disparou um único tiro contra a multidão, relata Ala Hamed, de 43 anos, um primo que estava lá. Na escuridão e no caos, ninguém percebeu imediatamente que o menino havia sido atingido.

“Agora, eles enviam primeiro os batedores, às vezes usam uniformes do exército e carros com placas palestinas. É claro que estão ficando mais organizados. Cada momento é pior que o anterior”, lamenta o pai de Omar, Ahmed, de 53 anos. “Sou otimista: quanto mais agressivos forem os israelenses, mais o mundo se voltará contra eles. O que me preocupa é o que acontecerá antes disso.” •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fúria cega’

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