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Dupla cinquentenária

Ivan Lins lança o disco Abre Alas e festeja a parceria com Vitor Martins, com quem compôs mais de 500 canções

Dupla cinquentenária
Dupla cinquentenária
Imagem: Rodrigo Simas
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Nana Caymmi é uma das grandes vozes femininas que viam nas composições de Ivan Lins e Vitor Martins uma mina de ouro. Um dia, impaciente com a espera por uma nova canção da dupla que deveria fazer parte de um novo disco, resolveu ir cobrá-la pessoalmente, na estreia de um show do cantor.

Ao encontrar Vitor na antessala do teatro, simulou ter gostado da bolsa de couro carregada pelo letrista que, gentilmente, estendeu-a para que ela pudesse olhá-la nas mãos. Nana, ao segurar a valise, virou-a de cabeça para baixo, fazendo com que caíssem no chão papéis e documentos.

Conhecida pelo temperamento explosivo, Nana, ali mesmo, e na frente de várias pessoas, passou a dizer impropérios, cobrando, diante de um estarrecido Vitor, a composição para seu novo álbum. A música, Mudança dos Ventos, entregue pouco tempo depois, tornou-se a faixa-título do disco lançado em 1980 e foi um sucesso na sua voz.

Ivan Lins, uma das testemunhas do anedótico episódio, relembra a cena às gargalhadas, enquanto conversa, por telefone, com CartaCapital. Afável e bom de conversa, Ivan Lins poderia passar horas contando outras histórias de sua parceria com Vitor.

A parceria, uma das mais ­profícuas da música brasileira, completa, em 2024, 50 anos. Para celebrar a efeméride, Ivan Lins lança, este mês, um álbum que leva o título da primeira canção que ambos criaram juntos: Abre Alas.

O novo álbum foi gravado na Suíça, 15 anos atrás, com uma big band internacional

O improvável encontro entre um carioca, Ivan, e um paulista de Ituverava, Vitor, deu-se no início da década de 1970 na sede da RCA Victor, na Rua Visconde da Gávea, no Centro do Rio, onde o cantor estava gravando seu quarto álbum, Modo Livre (1974).

“Ele trabalhava fazendo edição de música na gravadora”, relembra Ivan. Da primeira troca musical saiu Abre Alas, registrada no disco que Ivan estava então produzindo, e que foi um sucesso imediato. “Aí a gente resolveu continuar a parceria. Ficamos apaixonados um pelo trabalho do outro”, recorda.

A grande fase da dupla concentra-se entre os anos de 1977 e 1997: “Foi uma produção absurda. Dava para fazer uns três discos por ano”. Remontam a esse período composições que se tornariam clássicos do cancioneiro nacional: Desesperar Jamais, Daquilo Que Eu Sei, Novo Tempo, Bandeira do Divino, Começar de Novo, Vitoriosa, Lembra de Mim e mais um punhado de canções.

A parceria criativa sobreviveu ao tempo e até mesmo a uma empreitada comercial de alto risco encampada pela dupla: uma gravadora independente nos moldes das poderosas multinacionais, a Velas, criada em 1992. A ideia tomou corpo quando o violonista Guinga fez o primeiro disco de sua carreira, Simples e Absurdo, ao lado de Aldir Blanc, e não conseguiu atrair o interesse de nenhuma gravadora para o projeto.

“A gente adorava o disco, e então o Vitor disse: ‘Vamos abrir uma gravadora para o Guinga!’”, rememora Ivan. “Durante seis anos, a gravadora conseguiu sobreviver de um jeito bacana, mesmo produzindo músicas fora do mercado.” Na virada do século, no entanto, a Velas não resistiu às radicais mudanças que a tecnologia impôs à indústria fonográfica.

Dupla Ivan Lins e Vitor Martins se conheceram na sede da gravadora RCA Victor, no Rio, e compuseram, em 1977, Abra Alas, que logo se tornou um sucesso – Imagem: Redes sociais

A gravadora fechou em 2001, mas deixou um legado de respeito. Além dos discos de Ivan, ela acolheu trabalhos de artistas como Chico César, Lenine, Zizi Possi, Edu Lobo, e Lenny Andrade – para ficar em apenas alguns exemplos. “Durante todo esse período, continuamos compondo, porque precisávamos de dinheiro”, diz o artista. “Nossos direitos autorais de execução eram revertidos para a gravadora.”

Com o fim da empresa, Ivan cedeu sua parte na sociedade ao parceiro e, segundo diz, os rendimentos gerados pelo catálogo da Velas é o que ajuda a complementar – ao lado dos direitos autorais sobre as canções próprias – a renda de Vitor. “Com a internet, caiu muito o que os artistas recebem de direitos autorais”, explica o artista, que completará 79 anos em junho. “Muita gente, como é o meu caso, vive de shows. Mas um letrista nem show faz.”

Juntos, Ivan Lins e Vitor Martins têm mais de 500 composições gravadas. E a dupla segue ativa. “De vez em quando, a gente se fala. Tenho duas inéditas prontas e mais uma letra do Vitor para musicar”, conta, sem negar que a produção é bem menor do que no passado. “A preguiça vai batendo.”

O álbum lançado agora reflete, de certo modo, esse ritmo que não é, obviamente, o de décadas atrás. Registrado em 2009, na Suíça, Abre Alas chegou a ser distribuído por lá, três anos depois, mas não obteve grande repercussão. O trabalho sai aqui pela gravadora independente Mills Records.

O disco foi gravado com a big band George Robert Jazz Orchestra, de Genebra, e traz a participação especial do uruguaio Leonardo Amuedo, considerado pelo cantor como um dos maiores guitarristas do mundo. Das dez faixas, sete são releituras de composições antigas de Ivan Lins – quatro delas com assinatura também de Vitor Martins –, ­duas são instrumentais de George ­Robert e uma é a clássica Over the Rainbow.

A presença do jazz em seu mais recente trabalho está longe de surpreender. Ivan sempre teve grande proximidade com o estilo e, não por acaso, já foi gravado por nomes como Ella ­Fitzgerald e Sarah Vaughan, além de ser admirado por produtores renomados, como Quincy Jones, que, na década de 1980, inseriu sua música no circuito norte-americano.

Nos últimos anos, o artista tem gravado muito fora do Brasil, e ao lado de orquestras

A gravação com a George Robert foi, porém, sua primeira experiência com uma big band para um disco próprio. Mas Ivan parece ter tomado gosto. Logo em seguida, ele fez um registro fonográfico com a SWR Big Band, de ­Stuttgart, que rendeu um álbum ­Cornucopia (2013), lançado somente na Alemanha. Está prestes a sair ainda outro álbum gravado com uma banda instrumental de jazz da Dinamarca.

Essa presença internacional do cantor é não apenas sólida, como também longeva. Dentre os quatro Grammy ­Latino conquistados na carreira, um foi para o disco Ivan Lins and The ­Metropole Orchestra (2009), gravado com uma orquestra holandesa. E ele mantém o cartaz no exterior.

No ano passado, outra experiência com uma orquestra – a Orquestra Sinfônica de Tbilisi, na Geórgia – rendeu um disco. My Heart Speaks saiu pelo ­Resonance Records, selo norte-americano independente de jazz, e foi também distribuído no Brasil. “É um apreço que eles têm pela minha música, que casa bem com orquestras e big bands”, diz. “Componho já pensando em cordas, metais, na banda, na orquestra por trás.”

Embora falar sobre suas experiências internacionais e as aproximações com o jazz seja inevitável, o que Ivan Lins mais parece desejar, neste momento, é aproveitar o lançamento de Abre Alas para enaltecer o cinquentenário do encontro com Vitor Martins.

“Nos shows, agora, pretendo priorizar as músicas que fizemos juntos. Só não será 100% com a nossa parceria por uma música: Madalena, que é com Ronaldo Monteiro de Souza”, diz ele, referindo-se à canção que foi imortalizada na voz de Elis Regina, no disco Ela (1971). “Foi o primeiro sucesso e eu não posso deixar de tocar.” •

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dupla cinquentenária’

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