Drauzio Varella

drauzio@cartacapital.com.br

Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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Audição e demência

Um estudo mostra que os testes atuais tendem a menosprezar a associação entre déficit auditivo e risco de demência

Audição e demência
Audição e demência
(Foto; Wanezza Soares) Drauzio: “Se temos drogas de alta potência contra o HIV, por que não podemos desenvolver para a Covid-19?”
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A acuidade auditiva diminui com o passar dos anos. Os estudos mostram que essa queda afeta dois terços das mulheres e dos homens com mais de 70 anos.

Esses dados contrastam com o número de pessoas que usam aparelhos para corrigir ou minorar o problema. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 14% dos que escutam mal fazem uso desse recurso. Mesmo em países europeus, nos quais o sistema de saúde paga pelos aparelhos, os números não são melhores.

No Brasil, o número é certamente mais baixo ainda. Existe entre nós um preconceito arraigado, gerado pela associação que o convívio social estabeleceu entre esses dispositivos e a decrepitude de seus usuários – preconceito que não existe em relação aos óculos para deficientes visuais, por exemplo.

Além disso, os bons aparelhos são vendidos a preços proibitivos para a maior parte da população.

Vários estudos documentaram que a perda auditiva está associada ao aumento do risco de demências. Uma revisão recente revelou que a prevenção e a correção da perda estão associadas a 9,1% da redução dos casos de demência na população.

Atualmente, é considerada normal a audição de um adulto quando ele consegue ouvir tons de 25 decibéis ou menos, limite que foi definido arbitrariamente.

Será que perdas mais discretas, abaixo desse limite, também aumentariam o risco de deficiências cognitivas?

Para responder a essa pergunta, um estudo americano selecionou 6.451 participantes para avaliar as repercussões cognitivas da piora da audição em pessoas que ainda escutam a frequência dentro dos limites de 25 decibéis, portanto, com níveis auditivos considerados dentro da faixa da normalidade.

O estudo reuniu duas séries acompanhadas nos Estados Unidos (UCHS e NHANES). Os 6.451 participantes tinham 50 anos ou mais (média de 59,4); cerca de 60% eram mulheres.

Os resultados dos testes audiométricos mostraram uma relação inversa significativa entre audição e cognição, que se manteve em todo o espectro auditivo. A piora da audição foi independentemente associada ao comprometimento da cognição, mesmo em indivíduos com limites auditivos considerados normais.

Uma queda de apenas 10 decibéis na audiometria, por exemplo, representava a queda de 1,97 ponto na bateria de testes para avaliar a cognição.

Como os participantes da pesquisa eram pessoas com exames audiométricos que seriam considerados normais, segundo os critérios vigentes – e, portanto, sem indicação teórica para a prescrição de aparelhos –, os autores concluem que a associação entre déficit auditivo e risco de demência pode estar presente mais cedo do que se imaginava.

A associação mantém-se mesmo depois de controlar os dados para evitar interferência de fatores como idade, sexo, nível educacional e doenças cardiovasculares.

Os resultados sugerem que naqueles com pequenos declínios da audição, que ainda os mantém na faixa de normalidade, o comprometimento da cognição pode ser até mais acentuado do que nos já considerados deficientes auditivos.

Os autores defendem que, ao considerarmos o limite de 25 decibéis, perdemos a oportunidade de atuar precocemente na prevenção das demências. Eles propõem que a faixa de 16 a 25 decibéis seja considerada borderline.

Do ponto de vista biológico, a perda de audição é um processo contínuo que acompanha o envelhecimento. Desde as fases iniciais, ela está associada à piora da cognição.

Testes auditivos são realizados em ambientes silenciosos. Com isso, deixam de levar em consideração os ruídos ambientais ou os falatórios dos encontros sociais.

Tais situações dificultam o entendimento de pessoas mais velhas que, fora desses ambientes, escutam bem e, portanto, não se sentem motivadas a procurar os especialistas. É provável que as audiometrias deixem de diagnosticar esses casos em fases mais iniciais.

Não podemos esquecer que a faixa da população brasileira que mais cresce é a que está acima dos 60 anos. Avaliações da acuidade auditiva devem fazer parte da rotina de exames médicos nessa fase da vida.

O Sistema Único de Saúde (SUS) precisa fornecer aparelhos para os deficientes auditivos, por razões humanitárias e econômicas. Cuidar de pacientes com demência custa muito caro. •

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Audição e demência’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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