Cultura

assine e leia

Uma escola, um filme

Como Motel Destino, selecionado para a competição de Cannes, se conecta a um projeto de formação

Uma escola, um filme
Uma escola, um filme
Longa história. A produção dirigida pelo cineasta Karim Aïnouz teve participação de 11 pessoas ligadas à Porto Iracema das Artes e a um laboratório de narrativas – Imagem: Natali Hernandes/Ag. Foto e Redes sociais
Apoie Siga-nos no

Apresença de Motel Destino na seleta lista dos 19 escolhidos para concorrer à Palma de Ouro no 77º Festival de Cinema de Cannes, em maio, foi especialmente festejado em duas cidades: Berlim, onde vive o cearense Karim Aïnouz, diretor do filme, e Fortaleza, onde vive boa parte da equipe e do elenco.

No caso de Fortaleza, foi um pouco como se uma queima de fogos de artifício tomasse a escola Porto Iracema das Artes, localizada na antiga Capitania dos Portos, na Rua Dragão do Mar.

É que nada menos que 11 profissionais ligados à Porto – Escola de Formação e Criação do Ceará – participaram desse longa-metragem rodado em 2023 no município praiano de Beberibe, a uma hora e meia da capital. O projeto, mantido pelo governo do Estado, reúne diferentes estruturas formativas. Uma delas consiste em laboratórios de experimentação voltados a artes visuais, cinema, dança, música e teatro. E é a esses laboratórios que Motel Destino se conecta.

Em 2013, ao lado dos também cineastas Sérgio Machado (Cidade Baixa) e Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus), Aïnouz idealizou, para a escola que estava sendo montada, o Lab Cena 15, laboratório voltado ao desenvolvimento de histórias.

“Tomou-se, lá atrás, a decisão política de investir em histórias do Ceará e do Nordeste que ainda estivessem em um estágio bem inicial, criando um ambiente no qual essas ideias pudessem se desenvolver”, resume Manoela ­Ziggiatti, coordenadora do Lab. “O que se busca é fortalecer uma voz local e apostar em histórias, em geral, pouco exploradas. É um projeto de longo prazo que, agora, começa a render frutos mais visíveis.”

Do ponto de vista das políticas públicas de cultura, a escola tem algumas características que a distinguem: a estabilidade no decorrer de diferentes governos; a aposta em iniciativas sem apelo midiático; o olhar para o longo prazo; e, no caso do audiovisual, o foco específico em um aspecto criativo considerado ainda deficiente na produção do País.

As filmagens aconteceram em Beberibe, com elenco e equipe cearenses

“Durante os governos Temer e Bolsonaro, as políticas públicas cearenses não só se mantiveram como foram até ampliadas”, faz questão de pontuar Bete Jaguaribe, diretora de formação da Porto. “Segurar um projeto como esse, sem o espetáculo, é muito custoso. Porque os governos também são pressionados por demandas de visibilidade.”

Karim Aïnouz, ao conversar com ­CartaCapital, de Berlim, retoma o fio puxado por Bete e insiste que o projeto nunca foi “imediatista”. “Lembro que, no começo, a gente falava que ali era proibido filmar”, ri. “Tivemos, nesses anos, um importante processo de formação de mão de obra. Fomos instrumentalizando as pessoas para elas contarem histórias.”

O cineasta, que estreou em Cannes com seu primeiro longa-metragem, Madame Satã (2002), exibido na Quinzena dos Rea­lizadores, e apresentou outros quatro filmes nesse que é o mais prestigioso festival do mundo, se diz eufórico com a mais recente conquista e, ao mesmo tempo, muito satisfeito por ver, pela primeira vez, o Cena 15 ser olhado como merece.

Ele se recorda que o primeiro lampejo para o projeto veio quando começou a dar tutorias em laboratórios pelo mundo – Sundance incluído. Ao fim desses processos, de dias ou semanas, ele sentia falta de seguir mantendo contato com os autores. Não por acaso, na Porto os jovens criadores recebem tutorias e consultorias – que os ajudarão a chegar a uma primeira versão de roteiro – ao longo de sete meses.

O cineasta conta também que, conforme sua carreira foi se solidificando, passou a se perguntar por que os filmes brasileiros viajavam tão pouco. “Comecei então a me questionar sobre a clareza narrativa e os elementos dramáticos dos nossos filmes”, diz. Também não por acaso, o Cena 15 é ligado à ideia de dramaturgia e estrutura. A seleção dos seis projetos contemplados anualmente leva em conta o potencial narrativo – e de comunicação com o público – das ideias apresentadas.

Wislam Esmeraldo, roteirista de Motel Destino, foi um dos que, em 2014, tiveram uma ideia contemplada. Ele estava no último ano do curso de Cinema da Universidade Federal do Ceará (UFC) e, ao saber do laboratório e da tutoria de Aïnouz, diz ter pensado: “Meu Deus, preciso passar por isso!” “Pensei numa história superpessoal, fui escolhido e o ­Karim acompanhou de perto o meu processo. Foi algo transformador”, relembrou, poucos dias depois do anúncio de Cannes.

Em 2015, Esmeraldo foi convidado a fazer parte do Núcleo Criativo – outra política pública voltada ao setor, essa ligada à Agência Nacional do Cinema e deixada pelo caminho – coordenado por ­Aïnouz. Em busca de uma ideia que coubesse nesse grupo de trabalho, voltado a desenvolver histórias ligadas a crimes, ele começou a pesquisar o tema que daria origem a Motel Destino.

Esmeraldo conta que, antes da faculdade, via, basicamente, filmes que passavam na televisão e que ele alugava no Crato, município do Cariri, onde nasceu e cresceu. “Foi assim que fui me apaixonando pelo melodrama”, conta. “Via que esses filmes emocionavam e eram capazes de nos deixar dias pensando neles. Quando comecei a escrever, fui sendo levado por esse caminho dos filmes que eu conhecia.”

Crias. O ator Iago Xavier; o produtor Nilo Rivas; a diretora-assistente Luciana Vieira; a produtora de elenco Nina Kopko; e o roteirista Wislam Esmeraldo estão ligados à Porto Iracema das Artes – Imagem: Alan Sousa, Micaela Menezes e Acervo Pessoal

Filho de uma técnica de enfermagem e de um agente de endemias, ele diz que sempre sentiu ter vocação para as artes, mas que, durante muito tempo, guardou isso para si. Tanto que chegou a cursar Direito antes de saber, por um primo, que a UFC tinha aberto um curso de Cinema.

Luciana Vieira é outra integrante da equipe de Motel Destino que é cria da Porto e do curso da UFC. Ela faz parte da primeira turma da graduação, que foi aberta em 2010 e teve como convidado da aula inaugural Karim Aïnouz. Dois anos depois, Luciana estagiou em Praia do Futuro, também de Aïnouz, e, em 2015, foi selecionada para o Lab Cena 15. Desde então, lá seguiu. Hoje é uma das consultoras do projeto.

Luciana entrou em Motel Destino como produtora de locação. Nessa função, visitou 50 motéis e encontrou aquele onde aconteceram as filmagens. Foi ainda assistente de produção de elenco – que, exceção feita a Fábio Assunção, é praticamente todo cearense – e acabou por tornar-se diretora-assistente.

Luciana diz que, apesar de trabalhar integralmente com cinema há dez anos, só faz projetos contemplados em editais. “Acho que o dinheiro privado não chegou aqui porque, de certa forma, ainda é difícil que acreditem na nossa capacidade”, reflete. “Parece que acham que não estamos à altura, mas estamos. Espero que essa seleção para Cannes ajude a dar visibilidade a esse processo todo que vivemos aqui.”

Embora tenha 11 anos de vida, a Porto Iracema das Artes deriva de outra iniciativa pública marcante do Ceará: o Instituto Dragão do Mar, a primeira Organização de Cultura (OS) do País, criada em 1993.

O governador era Ciro Gomes, à altura filiado ao PSDB – partido que estenderia o modelo de OS da cultura para outros Estados – e seu secretário de Cultura era o antropólogo Paulo Linhares, a mesma pessoa que, sob o governo Cid Gomes, ­duas décadas depois, daria forma à Porto.

O Instituto Dragão do Mar abrigou uma escola que tinha à frente os cineastas Orlando Senna e Maurice Capovilla (1936-2021). Primeiro centro de formação em cinema no Estado, essa escola foi fechada durante o governo de Lúcio Alcântara, no início dos anos 2000.

As histórias dos projetos de cultura que dão certo, assim como aquelas dos filmes que dão certo, costumam estender-se pelo tempo e ter, como marcas, uma insistência do tipo água mole em pedra dura e a junção de um grupo de pessoas com propósitos não apenas comuns, mas claros.

“Um ano depois do fim do bolsonarismo, é importante que o audiovisual brasileiro volte a existir no mundo, até porque mostra a nossa capacidade de cicatrização”, diz Aïnouz, para logo completar: “E tão importante quanto isso é saber que essa seleção para Cannes chama a atenção para um filme que é fruto de uma política pública consistente”. •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma escola, um filme ‘

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo