Mundo
A fome como arma
A tragédia humanitária em Gaza intensifica-se e a falta de alimentos destrói famílias e esperanças


Duzentas e cinquenta calorias representam duas fatias de um pão integral comum vendido em supermercados: 12% da ingestão nutricional diária recomendada. Hoje, no norte de Gaza, dominado por um nível “catastrófico” de fome, como definiu a ONU, representa a ingestão calórica de um dia inteiro. Seis meses após o início da resposta militar de Israel, na sequência do brutal ataque do Hamas às comunidades fronteiriças do sul de Israel em 7 de outubro do ano passado, no qual 1,2 mil judeus foram mortos, na maioria civis, e quase 250 foram sequestrados como reféns, a fome aguda domina a faixa costeira.
Para quem tem dinheiro, a comida é perigosamente escassa. Para aqueles que não têm nenhum – e depois de Israel obstruir a entrega de ajuda humanitária durante meses, segundo funcionários da ONU e de outras agências –, encontrar sustento é uma questão de vida ou morte. De acordo com o IPC, o mecanismo de monitoração da fome apoiado pela ONU, 1,1 milhão de palestinos, metade da população de Gaza, viverá numa penúria catastrófica dentro de três meses, se as coisas permanecerem no estado atual e a violência não aumentar. “Antes da guerra, tínhamos boa saúde e corpos fortes”, disse recentemente uma mãe à agência humanitária britânica Oxfam. “Agora, quando olho para meus filhos e para mim, perdemos muito peso. Tentamos comer tudo o que encontramos, plantas ou ervas comestíveis, apenas para sobreviver.”
Outra mãe de seis filhos repetiu esse relato à Organização Mundial da Saúde e explicou que nos mercados as plantas silvestres estão principalmente disponíveis a altos preços, “sem legumes, frutas, suco… sem lentilhas, sem arroz, batatas ou berinjelas, nada”, levando muitos a sobreviver à base de malva, uma erva daninha comum. Numa Gaza arruinada e sitiada, constantemente sob a ameaça de bombas, artilharia e drones, a vida é definida por um refrão repetido por muitos: “Ainda estou vivo. Continuo a respirar”.
Os palestinos vivem hoje, em média, com 250 calorias diárias, 12% do recomendado
“Não sei se ainda sinto outra coisa além de medo, tristeza e frustração”, afirma Mohammed Mortaja, um entre as centenas de milhares de deslocados para a cidade de Rafah, no sul do país, ainda hoje sob a ameaça de uma nova ofensiva israelense. “Todas as manhãs o sol nasce e você está vivo. Sua jornada diária é permanecer vivo, na busca por água e comida e a fugir dos bombardeios e da ocupação.”
Mortaja diz estar totalmente focado na sobrevivência e não presta mais atenção nas notícias. Depois de seis longos meses, a esperança também foi posta de lado, substituída por uma sensação entorpecida de deslocamento. “Não sou mais iludido por palavras como ‘trégua’ ou ‘cessar-fogo’. Não me importo com nada, apenas procuro o que pode saciar minha fome e minha sede e espero ansiosamente por minha morte.”
Mais de 33 mil palestinos foram mortos no enclave, incluídas mais de 13 mil crianças, segundo o Ministério da Saúde de Gaza. Em seis meses de conflito violento, após anos de bloqueio israelense à faixa costeira, que serviu mais para fortalecer o Hamas do que para prejudicá-lo, Gaza hoje é definida mais pelo que foi perdido do que pelo que resta de uma sociedade outrora vibrante. Blocos de apartamentos e bairros inteiros foram arrasados. Os hospitais, reduzidos a ruínas, estão cercados por cães e cheiram a esgoto. As universidades foram explodidas e a agricultura destruída. A eletricidade e, com ela, a capacidade de processar água potável e residual, foram fatalmente interrompidas, contribuindo para a propagação descontrolada de doenças.
Suplício. As tropas israelitas intimidam as organizações de ajuda humanitária. Depois reclamam da comparação de Gaza a campos de concentração – Imagem: Said Khatib/AFP e ONU Mulher/Unicef
No mês passado, imagens analisadas pelo Centro de Satélites das Nações Unidas indicaram que 35% dos edifícios da Faixa de Gaza foram destruídos ou danificados na ofensiva. A vida foi atomizada, pois a guerra levou mais de 80% da população de 2,3 milhões a abandonar suas casas e procurar abrigo, principalmente no sul, em condições insalubres de superlotação. As entregas de ajuda humanitária foram estranguladas por Israel, que fechou as passagens terrestres, enquanto as recentes operações de lançamento aéreo são em escala limitada e muitas vezes causam mortes por problemas com falhas nos paraquedas e a queda de alimentos e remédios no mar.
A questão em Gaza é para onde irá a guerra agora. Uma avalanche de condenações internacionais de Israel pela morte recente de sete trabalhadores humanitários da instituição beneficente World Central Kitchen, num ataque prolongado de drones que atingiu seus carros, um após o outro, segue-se à revolta pelo elevado número de mortos e a fome crescente. Embora Tel-Aviv, sob pressão dos Estados Unidos depois da morte dos trabalhadores humanitários, tenha concordado em abrir mais passagens fronteiriças para permitir mais ajuda humanitária, algumas autoridades internacionais como o alto representante de política externa da União Europeia, Josep Borrell, acreditam ser insuficiente, e tarde demais para evitar a inanição. “Israel e seus aliados devem garantir que a ajuda possa fluir livremente para evitar a fome, e que haja um sistema de proteção para os trabalhadores humanitários que garanta nossa segurança. Acima de tudo, precisamos de proteção para os civis palestinos, que foram mortos indiscriminadamente nos últimos seis meses”, afirmou o norueguês Jan Egeland, secretário-geral do Conselho para Refugiados.
Juntamente com a ameaça de fome, a maior questão é o que acontecerá em Rafah, onde vivem 1,5 milhão de cidadãos. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, reafirmou a intenção de atacar a cidade, apesar das objeções de Washington e de outros aliados. Ahmed Masoud, ativista dos direitos humanos atualmente em Rafah, depois de ter sido deslocado seis vezes nos últimos seis meses, experiência típica, afirma ter perdido 40 amigos, sua casa e seu emprego. Agora, teme perder a saúde mental. “Tudo o que pensamos é como permanecer vivos, lutando para conseguir água e comida. Quando chega a noite, pensamos mais em ser mortos, especialmente porque ouvimos 24 horas por dia, sete dias por semana, o som dos aviões de guerra israelenses, especialmente dos drones”, descreve Masoud. “Tenho muita sorte de ainda ter a cabeça e não a ter perdido ainda.”
Rafah deixou, no entanto, de ser uma zona segura, embora nunca tenha estado isenta de ataques aéreos, e a população diz haver rumores de uma iminente invasão israelense. “Tudo está destruído ao nosso redor. Sentimos que a qualquer momento eles entrarão”, afirmou outro palestino morador da cidade, que não quis ser identificado. “Esperamos pela evacuação de Rafah a qualquer momento. Provavelmente, iremos em direção ao mar, à praia.” Segundo Masoud, todos esperam uma invasão, mas não sabem para onde ir.
“Aqui estamos, à espera do nosso destino”, lamenta Ahmed Masoud, ativista dos direitos humanos
O sentimento de medo corrosivo e generalizado levou aqueles que têm contatos no estrangeiro a fazer apelos desesperados, pedindo dinheiro emprestado para pagar as propinas exigidas pelos “intermediários” egípcios, às vezes dezenas de milhares de dólares por família, para atravessar a fronteira. “O governo norte-americano quer um plano claro para evacuar os retidos para locais seguros. Para ser sincero, não sei de que ‘área segura’ estão falando”, diz Masoud. “É um medo muito grande, mas estamos acostumados a ser mortos, a ouvir notícias tristes, não temos nada a perder. Então aqui estamos, à espera do nosso destino.”
Apesar da crescente pressão internacional a favor da interrupção dos combates, entre elas a recente aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, as negociações de cessar-fogo se concentraram na libertação de dezenas de reféns israelenses detidos pelo Hamas, muitos dos quais teriam morrido em cativeiro, que permanecem presos, apesar do enorme sofrimento. O Hamas diz que as forças de Israel devem deixar Gaza. Israel diz que deve concluir a destruição do Hamas.
Apesar das alegações por Israel de que matou cerca de 13 mil combatentes inimigos e desmantelou as capacidades militares do grupo na maior parte de Gaza, não há, porém, sinais de que o Hamas esteja acabado, e seus integrantes se reagrupam em áreas onde Israel havia declarado vitória. Michael Milshtein, ex-oficial de alto escalão da inteligência militar israelense e especialista em estudos palestinos na Universidade de Tel-Aviv, diz que Israel enfrenta duas opções desagradáveis: aceitar um acordo de reféns e cessar-fogo que reconheça a sobrevivência do Hamas, ou intensificar a campanha militar e conquistar Gaza na esperança de que o inimigo seja destruído. A expectativa de que a abordagem atual dos militares israelenses possa destruir o Hamas ou forçá-lo a se render, afirma, é “excesso de otimismo”.
Amos Harel, do jornal israelense Haaretz, foi ainda mais contundente e descreveu uma guerra estagnada, tropas esgotadas e uma insensibilidade cada vez maior em relação às vidas palestinas, onde “a ideia de que ‘não há inocentes em Gaza’” é comum entre os soldados. “Hoje está claro para todos, exceto para os seguidores cegos, que as promessas de ‘vitória total’ que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu fazia todos os dias são totalmente inúteis.”
Por enquanto, tudo o que se pode dizer com alguma certeza é que uma guerra lançada com expectativas irreais vai arrastar-se ainda por mais tempo em meio ao crescente isolamento internacional de Israel. E que aqueles que pagam o preço mais alto são os civis palestinos de Gaza. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A fome como arma’
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