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Um hino à arte de cozinhar

O Sabor da Vida, de Tran Anh Hung, vencedor do prêmio de direção em Cannes, é um filme sobre o deleite

Um hino à arte de cozinhar
Um hino à arte de cozinhar
Estética sensorial. Com O Sabor da Vida, protagonizado por Juliette Binoche e Benoît Magimel, o cineasta vietnamita quis mergulhar em um aspecto essencial da cultura da França, país para o qual migrou quanto tinha 12 anos – Imagem: Diamond Films e Redes sociais
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O cardápio atual de histórias sobre culinária no cinema e na tevê é repleto de conflitos e crises – com cozinhas transformadas em campos de batalha, pratos preparados em frigideiras em brasa e temperamentos furiosos. Mas o filme francês O Sabor da Vida, em cartaz nos cinemas brasileiros a partir da quinta-feira 11, passa longe da série O ­Urso (Star+) ou do filme O Chef (2022).

A obra do diretor vietnamita Tran Anh Hung tem uma temperatura mais próxima da fervura baixa e é também o hino mais arrebatador à culinária desde A Festa de Babette (1987) e Comer, Beber, Viver (1994).

Ambientado na década de 1880, o filme, que rendeu a Tran o prêmio de melhor diretor em Cannes, em 2023, é sobre a relação entre a cozinheira Eugénie (Juliette Binoche) e seu patrão e amante gourmet, Dodin Bouffant ­(Benoît ­Magimel). Mas, em última análise, o filme é sobre criatividade. “Queria fazer um filme sobre arte e escolhi a comida por ser uma arte muito concreta. Para mim, o cinema tem de ser muito sensual e físico.”

Falando em inglês, pelo Zoom, da ­cidade de Ho Chi Minh – a antiga ­Saigon –, no ­Vietnã, com a câmera desligada para driblar a má conexão, Tran descreve os prazeres de um filme cujos personagens se deleitam não só em comer, mas em manusear, quase como se esculpissem, peixes, aves e aipo.

“Sinto que hoje os filmes estão muito focados nos temas e na história. Vemos cada vez menos a linguagem do cinema”

Em longas sequências coreografadas com elegância, vemos Juliette e ­Magimel preparando, de forma meticulosa, pratos complexos. “Foi muito fácil para nós”, diz Tran, sem soar plausível, “porque eu, simplesmente, dava a eles um frango ou uma alface e… vamos lá! E isso imediatamente produzia neles o prazer de estar transformando algo.”

Se O Sabor da Vida parece essencialmente francês é porque Tran quis fazer um filme sobre o significado da comida no país para onde migrou aos 12 anos. “Na França, a refeição é o momento no qual as pessoas se reúnem, e falam não só sobre comida, mas sobre cultura. No Vietnã, não conversamos muito à mesa, mas, na França, você vê pais perguntando aos filhos, durante as refeições: ‘O que você leu recentemente?’”

Tran também explora a história da sistematização e das formalidades da cultura alimentar francesa – como pôr a mesa, quantos copos, quantos garfos. Dodin, seu personagem, estabelece protocolos culinários e é conhecido como “o Napoleão das artes culinárias” – o título francês do filme é, inclusive, A Paixão de Dodin Bouffant.

Ele é, nesse sentido, uma versão de ­Auguste Escoffier, que formalizou a cozinha francesa moderna no livro Le ­Guide Culinaire (1903). “Antes disso, era uma bagunça. Hoje você sabe que precisa de 20 gramas disso e 1.000 gramas daquilo para fazer tal prato”, conta o diretor. “Naquela época, uma receita parecia um poema, era preciso saber interpretá-la.”

Outra fonte à qual Tran recorreu foi o clássico gastrofilosófico A Fisiologia do Gosto (1825), de Brillat-Savarin. E, no set, contou com a consultoria do chef Pierre Gagnaire, que tem três estrelas Michelin. O próprio Tran, no entanto, só se aventurou a pilotar um fogão depois de fazer o filme – e apenas com comida francesa, que considera menos complicada. “Para montar uma refeição vietnamita, você tem de fazer muitos pratos diferentes”, diz.

Mas a mistura que verdadeiramente se distingue em O Sabor da Vida é aquela entre Juliette e Magimel: ex-casal na vida real, eles não atuavam juntos desde 1999. O resultado é uma ternura e um respeito palpáveis na tela entre duas pessoas maduras que se conhecem há anos.

Texturas. O Cheiro do Papaia Verde (1993), que fez a fama do cineasta no circuito de arte, se passava em Saigon – Imagem: Asia Films/Festival de Cannes 1993

Tran diz que a atriz, inicialmente, estava cética em relação a Magimel aceitar o papel e, depois, sobre o quanto a dupla daria certo. Mas o resultado foi perfeito, diz ele. “Benoît tem uma certa fragilidade. Você sabe que ele tem dúvidas diante dessa mulher muito forte – Eugénie, ­Juliette.” A cena favorita de Tran entre os dois personagens é aquela na qual ambos, simplesmente, dividem uma omelete. “De alguma forma, ela está dizendo que o ama, mas de um jeito que ele não consegue entender completamente”, descreve o diretor. “O momento não fica muito claro – eu realmente gosto disso.”

Este filme pode parecer um ponto de virada na carreira de um diretor que fez o nome com dramas vietnamitas. Mas ele, na verdade, remete muito à sua comentada estreia, em 1993, com O Cheiro do Papaia Verde. Nesse longa-metragem ambientado em Saigon nos anos 1950 e 1960, uma jovem empregada doméstica fica extasiada pelas texturas do mundo ao seu redor – aí incluídos os alimentos.

O filme, à época, causou certa controvérsia por sua aparente glorificação da vida de uma mulher em servidão. É, porém, inconteste que sua poesia pura subverte, em alguma medida, esse significado superficial.

O Sabor da Vida também foi lido, por alguns críticos, como um filme que mostra uma mulher preparando refeições para o prazer de seu amante e de seus amigos epicuristas. Por outro lado, também vemos Dodin cozinhando com devoção para Eugénie e admirando-a como artista. “É Eugénie quem determina a natureza dessa relação”, diz o cineasta.

Tran cresceu no Laos, filho de pais que faziam uniformes para o exército francês. A família mudou-se para a França quando ficou claro que o Vietnã e o Laos seriam tomados pelos comunistas, em 1975. Em Paris, ele estudou cinema antes de realizar O Cheiro do Papaia Verde, recriando a antiga Saigon num estúdio francês.

Esse filme e As Luzes de Um Verão (2000), sobre três irmãs na Hanói moderna, estabeleceram sua reputação como um meticuloso poeta do cinema. Mas, entre esses dois trabalhos, ele fez filmes de outra natureza, como Entre a Inocência e o Crime (1995), um drama intenso e violento sobre a vida nas ruas da Cidade de Ho Chi Minh, baseado no que Tran viu ao retornar ao Vietnã no início dos anos 1990.

No novo e elogiado filme, Tran parece ter-se reinventado como um diretor hiperfrancês

A estrela dos quatro primeiros filmes de Tran foi sua mulher, Tran Nu Yen Khe, uma das presenças mais cativantes do cinema de arte dos anos 1990. Desde então, ela trabalha com ele atrás das câmeras e é diretora de arte de O Sabor da Vida. No dia da entrevista, o casal, que tem um filho e uma filha na casa dos 20 anos, está em Ho Chi Minh para uma exposição de pinturas e esculturas de Yen Khe.

“Toda a beleza que você vê nos meus filmes vem dela”, diz Tran. Tran conheceu-a em Paris, quando estava fazendo o casting para um curta-metragem. Ao vê-la, sentiu como se, de repente, descobrisse o Vietnã: “Foi como se um ancestral tocasse meu ombro e dissesse: ‘Sabe, ela é a pessoa certa’”. O Sabor da Vida é um retrato velado do relacionamento do casal? “Sim, é óbvio”, diz Tran – e embora eu não o veja sorrindo, suspeito que esteja.

Com O Sabor da Vida, Tran parece ter-se reinventado como um diretor hiperfrancês. Juliette Binoche me diz: “Isso não significa que ele perdeu seu lado vietnamita, mas o refinamento francês faz parte de quem ele é, de sua sensibilidade”. Os projetos que Tran toca neste momento são, novamente, asiáticos – um drama vietnamita feminino e uma história sobre Buda – e parecem seguir sua estética meticulosa.

“Sinto que hoje os filmes estão muito focados nos temas e na história. Vemos cada vez menos a linguagem do cinema.” Ele, por sua vez, acredita na miniatura: “Algo muito pequeno e, ao mesmo tempo, com um significado muito profundo sobre a sensação da vida”. A sensação, você poderia dizer, e o sabor. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um hino à arte de cozinhar’

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