CartaCapital
O xis da questão
Há claros interesses econômicos e políticos por trás dos ataques do bilionário à regulação das redes sociais e à soberania nacional


As declarações de Elon Musk contra ministros do Supremo Tribunal Federal e outras autoridades, inclusive o presidente da República, constituem um grave ataque à soberania e autodeterminação do nosso país. Proprietário da rede social X desde 2022, o empresário tem negócios variados no Brasil, inclusive contratos com o setor público. Ainda assim, anunciou que não pretende cumprir ordens judiciais e não vai respeitar as regras estabelecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Musk publicou uma série de posts pedindo a prisão do ministro Alexandre de Moraes e afirmando que há uma ditadura judicial instalada no Brasil que promove a censura. As manifestações do bilionário não são intempestivas e tresloucadas, muito menos isoladas. Elas têm objetivos muito claros que envolvem interesses econômicos e políticos do empresário não apenas no Brasil, mas também na América Latina.
O primeiro ligado ao mercado de carros elétricos, desde a produção de baterias de lítio, passando pela implementação de plantas de produção de automóveis e pela comercialização dos carros da Tesla na região. O Brasil possui a sétima maior reserva de lítio do mundo e é um mercado consumidor de automóveis que desperta um forte interesse em Musk.
O segundo está relacionado a outra empresa de Musk, a Starlink, que oferece conectividade à internet através de satélites de baixa órbita. A atuação de Musk nesta área não é exatamente motivada pelo altruísmo de universalizar o acesso à internet, mas tem implicações geopolíticas. O governo dos EUA já expressou que os satélites de Musk podem ser uma alternativa viável ao Sistema de Posicionamento Global (GPS, na sigla em inglês), que já está defasado com relação a outros sistemas.
O terceiro diz respeito ao uso do X como plataforma política. Na época em que a empresa foi adquirida, Elon Musk afirmou que o Twitter seria um espaço de liberdade de expressão absoluta. Desde então, iniciou um processo de demissão em massa de funcionários pelo mundo, principalmente nas áreas de relacionamento com governo e sociedade e de moderação de conteúdo. O resultado foi o crescimento alarmante dos conteúdos de desinformação e discurso de ódio na plataforma.
O dono do X também usa seu perfil pessoal para atacar iniciativas de regulação das plataformas de redes sociais, além de engrossar posicionamentos do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua base de apoio. Suas manifestações mais recentes serviram de munição para os grupos bolsonaristas ampliarem os ataques contra as instituições da República.
O parlamento precisa impor regras às empresas que atuam de forma parasitária em nosso país
Musk busca posicionar-se como uma liderança da extrema-direita no mundo. Isso fica explícito na leitura de suas postagens, não só com respeito ao Brasil. Fica evidente, também, quando adota posturas diferentes com relação aos países e suas regras para plataformas digitais. Sobre a decisão do governo indiano para moderação de contas e conteúdos, Musk disse que vai cumprir e respeitar a legislação indiana. Ora, por que então não adota a mesma postura para o Brasil?
Este episódio envolvendo Musk só evidencia a necessidade de o Brasil avançar na aprovação de uma legislação para estabelecer e regular a atividade das plataformas de redes sociais. É urgente a definição de diretrizes relacionadas à transparência e aos mecanismos de tomada de decisão com relação a contas e conteúdos de terceiros, sejam aqueles que ampliam a escala e a velocidade de visualização de um conteúdo por decisão automatizada ou em razão de pagamento na forma de impulsionamento ou patrocínio, sejam aqueles que reduzem o alcance ou excluem conteúdos. Fundamental, também, definir qual a responsabilidade das plataformas nesse contexto, principalmente com relação a conteúdos que podem trazer danos coletivos aos direitos fundamentais e à democracia.
A sociedade brasileira tem o direito de ter informações granulares sobre as atividades dessas empresas que envolvem um serviço essencial como a circulação de informações e notícias. As autoridades têm o dever de exigir que as regras próprias das plataformas estejam em consonância com a legislação nacional e com a nossa Constituição, no sentido de preservar direitos humanos, um ambiente mais saudável de comunicação, defender a democracia e a integridade de processos políticos nacionais.
Desde 2020, o Congresso Nacional mobilizou centenas de pessoas entre representantes do setor privado, de órgãos públicos, da sociedade civil e acadêmica para discutir propostas para regular as plataformas. Um dos projetos que centralizaram atenções foi o que dispõe sobre a Transparência, Responsabilidade e Liberdade na Internet, o PL 2630. São quatro anos de debate acumulado, que não podem ser desprezados.
O Parlamento precisa ser célere na sua missão de oferecer uma legislação sobre o tema. Não podemos permitir que essas empresas sigam atuando de forma parasitária, coletando dados e impondo um modelo de negócios que aufere bilhões em lucro no Brasil e ainda se coloquem acima dos interesses nacionais. •
*Jornalista, doutoranda em Ciências da Comunicação, assessora especial da ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação e coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O xis da questão’
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