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Da privatização de FHC às maracutaias do governo Bolsonaro, o setor elétrico está cada vez mais disfuncional

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Imagem: Paulo Pinto/ABR
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Preço é uma palavra que tem tirado o sono do presidente. Dos alimentos, da gasolina, da luz… O cotidiano duro da população, cujos salários estão mais ou menos iguais há uma década, enquanto o custo de vida encareceu, é uma das razões para a popularidade de Lula e de seu governo estar nos menores níveis desde a volta ao poder. No caso da energia, o petista abismou-se com números apresentados pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira: 87 milhões de brasileiros pagam 2,5 vezes mais que 3 milhões de empresários pelo quilowatt-hora, uma unidade de medida setorial. Lula quer uma solução para que “uma pessoa que tem uma geladeira, um rádio, uma televisão, cinco bicos de luz, um chuveiro” não pague mais do que “parte do empresariado”.

Na segunda-feira 1°, o presidente teve uma longa reunião a respeito com ministros. Na terça-feira 9, deve ouvir especialistas. Planeja até convocar o Conselho Nacional de Política Energética, órgão consultivo da Presidência. “Temos uma trajetória de custos crescente no setor elétrico. A energia no Brasil vai ficar mais cara. Ponto”, diz Ronaldo Bicalho, pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A situação exige uma ação estatal firme, algo em falta, prossegue ele, para quem o governo não tem política energética. Quadro resultante de uma combinação de fatores. Um deles, explica Bicalho, é o “esgotamento do nosso modelo hidráulico”, responsável por 62% da geração elétrica. O Brasil já teve reservatórios de água para usina hidrelétrica capazes de aguentar cinco anos, agora suportam de três a quatro meses de seca. “Estamos expostos ao risco hidrológico. A segurança energética no País tem diminuído.”

A vantagem competitiva do Brasil tem sido desperdiçada ano a ano

Uma opção é ampliar a oferta de energia eólica e solar, que atualmente supre 16% do sistema. Fontes baratas na origem, mas caras nas tomadas. Em geral, as usinas estão no Nordeste e, para chegarem aos grandes mercados consumidores do Centro-Sul, precisam de linhas de transmissão. Desde 2023, o governo fez três leilões para atender à demanda. As linhas custarão 60 bilhões de reais, investimento, ao fim e ao cabo, pago pelo consumidor via tarifas.

A conta de luz residencial subiu 130% nos dez anos de 2014 a 2023, segundo o IBGE, bem acima da inflação do período, de 87%. O salário médio dos trabalhadores era de 2.893 reais há uma década e terminou 2023 em 3.032 reais. Só no ano passado, o aumento da energia residencial foi de 9,5%, o dobro do IPCA. Para 2024, a Agência Nacional de Energia Elétrica estima mais 5,6%, ante previsões de inflação de 3,5% a 4%.

Cravo e ferradura. Silveira oscila em suas propostas de solução – Imagem: Arquivo/MME

Há digitais de Jair Bolsonaro no aumento recente das tarifas, uma fatura de 20 bilhões de reais deixada pelo governo anterior para ser paga, em grande proporção, pela população ao longo do mandato do sucessor. “Bombas de efeitos retardados”, na visão de Silveira. O papagaio nasceu durante a pandemia em 2020 e a crise hídrica de 2021. Nas duas situações, Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, agiram para manter o lucro das distribuidoras de energia. A ­Covid-19 derrubou a atividade econômica e, por tabela, o consumo de eletricidade. Para as distribuidoras não perderem grana, ou perderem menos, o governo autorizou-as a tomar empréstimos bancários e a repassar o financiamento para as contas de luz. Foi um negócio de 15 bilhões de reais efetuado por 61 empresas. Os bancos (16, na maioria privados) meteram a faca nos juros: de 12% a 13%, conforme o Ministério de Minas e Energia. À época, maio de 2020, a taxa do Banco Central era de 3%. Os empréstimos serão liquidados até dezembro de 2025, na proporção de 30% sob Bolsonaro e 70% sob Lula.

No caso da crise hídrica, a reação de Bolsonaro, Guedes e apaniguados foi encarecer a tarifa. Colocou-se no bolo disponível para consumo uma energia mais cara que a hidrelétrica, como aquela de origem térmica (gás natural, óleo). Surgiu até uma bandeira tarifária nova, a escassez hídrica. A operação custou 5 bilhões de ­reais, montante a ser lançado por 54 meses, iniciados em janeiro de 2023. Havia alternativa? Sim: decretar racionamento, como em 2001. Neste caso, porém, as chances de reeleição do capitão evaporariam. Foi, na prática, um racionamento via preços, pior para os mais pobres. No último ano do capitão, a luz baixou 19%, graças a uma medida eleitoreira, a redução do ICMS, e a volta das chuvas. Do contrário, aumentaria 9%, conforme a Associação Brasileira de Comercialização de Energia.

Tunga. O modelo de venda da Eletrobras foi uma das bombas deixadas por Guedes – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara e Washington Costa/ME

O Ministério de Minas e Energia bolou um plano para tentar converter a alta projetada de 5% neste ano em uma redução de 3% a 5%. A proposta passa por negociações em torno de uma ação judicial que o governo moveu em maio de 2023 para ter mais voz e voto na Eletrobras. Pela lei da privatização, de 2021, a empresa pagaria 32 bilhões ao governo em 25 anos. A verba subsidiaria a conta de luz da população. Uma parte, 5 bilhões, foi paga em 2022. Silveira quer antecipar o restante, cerca de 26 bilhões de reais (outro naco foi quitado em 2023) para igualmente subsidiar, e mais, as tarifas. A antecipação pode surgir de um acordo com a Eletrobras ou de uma operação financeira. Neste último caso, um banco pagaria ao governo a dívida, com desconto no valor total de 26 bilhões, e depois cobraria da empresa. É o que se chama de “securitização”.

Há uma Medida Provisória pronta para viabilizar a securitização. Falta a assinatura do presidente. Na segunda-feira 1°, Silveira disse, após reunir-se com Lula, não ser preciso “conversar” com a Eletrobras, ou seja, buscar acordo. Declaração da boca para fora, segundo apurou CartaCapital. As conversas existem e o próprio ministro abriu o jogo em um evento em São Paulo, em 21 de fevereiro. “Eu tive a ideia de permitir (a securitização) na Medida Provisória, caso a Eletrobras não se sensibilize e adiante esse pagamento”, afirmou na ocasião. As negociações com a empresa junta dois temas: a antecipação do dinheiro e a ação judicial. Vai adiante desde que o Supremo Tribunal Federal decidiu, em dezembro, dar um prazo para as partes tentarem um acordo. O prazo termina na segunda-feira 8 e tanto o governo quanto os controladores da holding de energia pediram mais tempo. Na ação, o governo contesta o fato de ter 43% do capital da firma, mas só 10% de voz e voto, uma “engenharia” da lei da privatização. Nos bastidores do poder, conta-se que a empresa propôs uma saída oposta à buscada pela ação: em vez de mais voz e voto ao governo, menos capital na empresa. “Eles querem nos dar dinheiro, nós queremos poder político”, afirma uma autoridade governamental.

Brasília deseja ter mais indicados no comando da Eletrobras. Quantos? Aceitará menos, caso os controladores topem antecipar os 26 bilhões? A propósito: o negociador da empresa é Luís Inácio Adams, ex-filiado do PT e advogado-geral da União no segundo governo Lula e nos de Dilma Rousseff. “Vira-casaca”, define a Associação dos Empregados da Eletrobras.

O Ministério de Minas e Energia defende o “liberou geral”, modelo que está na base dos problemas atuais

E Silveira, seria um negociador confiável pelo governo? Na quarta-feira 3, declarou que a privatização foi “entreguismo do modelo ultraliberal do ministro Paulo Guedes”, mas, dois meses antes de a AGU mover a ação judicial no ano passado, dizia que o negócio era fato consumado.

Diante dos imensos desafios no setor elétrico impostos por nossa realidade, sem folga nas fontes hídricas, e pela transição energética, o governo deveria jogar duro para recuperar o controle da Eletrobras. É o que diz Clarice Campelo Ferraz, professora de Ciências Econômicas e diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico. A França, afirma, reestatizou a maior geradora do País no ano passado, a gigante EDF, pois deseja “energia barata”. “Você não abre mão de um ativo estratégico numa transição como a que vemos no setor energético”, diz. A Eletrobras controla vários reservatórios de água, salienta, e tende a fazer algo “perverso”, administrá-los de modo a maximizar os lucros. Tradução: esconderá água para encarecer a luz. Não à toa, diante das perspectivas favoráveis aos lucros da empresa, bancos como Bradesco, BTG e Itaú apontam a seus clientes que a compra de ações da Eletrobras é um dos principais negócios na atualidade.

Um experiente funcionário da ex-estatal aponta mais uma razão para aumentos futuros do lucro da companhia à custa das contas de luz, o fim das chamadas “cotas”. Em cinco anos, contados a partir da privatização, em 2022, a Eletrobras poderá vender ao preço que quiser, e para quem quiser, como empresas, uma energia que antes estava carimbada para custar pouco e ser destinada à população em geral. É obra da privatização e outro fator a pressionar as contas de luz daqui para a frente. Uma “bomba-relógio” a somar-se às “bombas de efeitos retardados”. Para tentar conter as tarifas no longo prazo, o ministro Silveira defende usar verba do Tesouro Nacional ou da exploração de petróleo e subsidiar a população. Falta saber o que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acha. Para Bicalho, a solução via “subsídios” não é a melhor, mas, por ora, é a mais viável.

Conexão. Sem investimentos em transmissão, o País desperdiça o potencial eólico – Imagem: iStockphoto

Silveira tem outra ideia de longo prazo: um “liberou geral” no mercado de energia, com permissão de venda para qualquer um por qualquer comercializadora, em geral bancos. Liberou geral que, aliás, é uma das causas daquela disparidade de preços pagos por empresários e a população. “Um erro. Nos Estados Unidos discute-se isso há mais de 40 anos e, dos 50 estados, só 17 têm mercado livre”, diz Bicalho.

Há ainda o fim de concessões de distribuidoras à vista no atual governo Lula, contratos de 30 anos firmados na década de 1990. Silveira prepara regras de renovação antecipada, enquanto o Congresso trama para tirar do governo a última palavra sobre o assunto. Quem está com a concessão sob risco é a Enel, estatal italiana responsável por abastecer a capital paulista. Na segunda-feira 1°, o ministro determinou à Aneel a abertura de um processo sobre “reiterados episódios de descontinuidade do fornecimento de energia elétrica” na cidade de São Paulo. A empresa é um caso, segundo Clarice Ferraz, de algo cada vez mais comum, a troca de trabalhadores por máquinas no setor elétrico. Essa troca entra nos reajustes anuais de tarifas, o que é bom para as empresas e ruim para os consumidores, além de precarizar o serviço. “O governo parece que não está informado de todos os nossos problemas elétricos”, diz a especialista.

A ver se as conversas à vista do presidente vão clarear a situação. •

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

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