Cultura
Narradores em busca da palavra
Duas novas obras de Jon Fosse lançadas no Brasil dão concretude ao projeto literário do Nobel de 2023


No discurso proferido na Academia Sueca, ao receber o Nobel em Literatura, no fim de 2023, o escritor norueguês Jon Fosse relembrou que, na escola, ainda adolescente, foi chamado pelo professor para ler um texto em voz alta e, sentindo-se tomado por um imenso pânico, saiu correndo da sala.
Esse medo, o da leitura em voz alta, sempre o acompanhou. E foi com esse sentimento que ele teve de lidar ao receber o mais importante prêmio literário do mundo.
“De certa forma, foi como se o medo tirasse de mim a minha linguagem, e que eu tivesse de recuperá-la, por assim dizer”, disse, para quem o assistia em Estocolmo. “E, para eu fazer isso, não poderia ser nos termos de outras pessoas, mas por conta própria.”
E talvez o que seja mais forte nesta frase é que ela acaba por resumir o que há de mais característico em sua escrita: em seus livros, as pessoas buscam a própria voz para, por meio dela, superar as agruras da vida.
Em A Casa de Barcos, lançado recentemente no Brasil, a questão central a mover o protagonista é a busca por uma maneira de narrar. Tomado por um senso de confusão e urgência, esse homem sem nome se deixa atropelar pelas palavras.
Enquanto tenta construir sua narrativa, ele se repete; vai e volta. Quando parece avançar, é assombrado pelo próprio avanço e recua – às vezes, em muitos eventos. O que Fosse faz é buscar uma forma literária capaz de dar concretude aos fantasmas que assombram seu personagem.
A Casa de Barcos. Jon Fosse. Tradução: Leonardo Pinto Silva. Editora Fósforo (144 págs., 64,90 reais) – Compre na Amazon
Assim começa o livro: “Eu não saio mais de casa, uma angústia tomou conta de mim, e não saio mais de casa. Foi neste verão que a angústia tomou conta de mim. Reencontrei o Knut, não o via fazia uns dez anos, provavelmente. Eu e o Knut estávamos sempre juntos. Uma angústia tomou conta de mim. Não sei o que é, mas a angústia faz minha mão esquerda doer, os dedos doem. Não saio mais de casa”.
Para cada nova informação, é como se esse narrador, em sua perturbação, voltasse algumas casas no jogo da narração. E essa impossibilidade de seguir em frente se estende pelo romance todo, fazendo, inclusive, com que desconfiemos do que esse narrador confuso diz e faz. Pode até soar como sendo algo enervante, mas não é. Ao contrário.
Fosse domina a técnica de colocar no papel a perturbação mental e emocional desse homem que mora com a mãe e passa a maior parte do tempo em casa, mas tem um reencontro, com o antigo amigo Knut, que causará uma grande transformação em sua vida.
Publicado originalmente em 1989, A Casa de Barcos foi o livro que colocou o autor no mapa literário de seu país e, posteriormente, do mundo. De certa forma, tudo o que ele escreve ainda irradia desse romance.
Trilogia. Jon Fosse. Tradução: Guilherme da Silva Braga. Companhia das Letras (200 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon
Outro livro de Fosse que acaba de ser lançado no Brasil é Trilogia, composto de três narrativas curtas, publicadas entre 2007 e 2014: Vigília, Os Sonhos de Olav e Repouso.
Novamente, trata-se de histórias que transitam entre o realismo e o sonho e que giram em torno da busca por uma maneira de narrar. Os personagens, às vezes, parecem até inumanos.
No primeiro dos textos, localizado temporalmente cem anos atrás, o casal Asle e Alida anda pelas ruas de Bergen, cidade na costa da Noruega. Ela está grávida e ambos, desprovidos de família e recursos, buscam, sem sucesso, um abrigo – o diálogo com a narrativa bíblica é facilmente percebido.
Já na segunda novela, Asle e Alida se transformaram, como o autor faz questão de explicar logo no primeiro parágrafo, em Olav e Åsta. Olav é um violinista que precisa confrontar seu passado. Mesmo tendo mudado de nomes e de cidade, eles ainda são reconhecidos por um homem que se recorda de coisas estranhas a respeito deles.
A conclusão da trilogia, por sua vez, é protagonizada por Ales, filha de Alida, que nunca conheceu Asle, mas carrega em si o passado que, desde o primeiro conto, Fosse vai engendrando para o leitor. É como se o último texto fechasse o ciclo da existência de Asle e Alida.
Assim como acontece em A Casa de Barcos, a prosa de Trilogia é poética e um tanto etérea, a ponto de nos fazer questionar se os personagens são pessoas de carne e osso ou entidades porosas às quais Fosse, por meio das palavras, procura dar concretude.
Embora tenha passado muitos anos ausente dos catálogos das editoras brasileiras, Jon Fosse havia sido descoberto por aqui pouco antes da projeção adquirida após o Nobel. A Companhia das Letras havia lançado É a Ales e a Fósforo, Brancura. Seis meses depois do prêmio, mais duas obras chegaram por aqui. Outras estão prometidas para os próximos meses. O conjunto nos ajuda a compreender sua grandeza. •
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Narradores em busca da palavra’
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