Mundo
Pedra no sapato
Cansado das estripulias de Maduro, o governo Lula critica o cerceamento aos direitos da oposição


A Venezuela nunca foi um parceiro fácil. Em nome de um propósito maior, a integração regional e o fortalecimento da América do Sul como território de paz e desenvolvimento, os governos petistas, em particular durante os mandatos do presidente Lula, preferiram, em vários momentos, relevar as “malcriações” do vizinho. Tem sido assim desde os tempos de Hugo Chávez, descreveu o ex-chanceler Celso Amorim em seu último livro, Laços de Confiança. “Aliança trabalhosa” e “pedra no sapato” são dois dos termos usados por Amorim para descrever as relações com Chávez e com o governo venezuelano ao longo das últimas duas décadas, eterna “dor de cabeça”, outra definição possível, mas não utilizada pelo diplomata.
Paciência tem, no entanto, limite. E a do Brasil parece ter chegado à borda do copo depois de a Justiça venezuelana, sob inegável pressão do presidente Nicolás Maduro, candidato a um terceiro mandato de seis anos, impedir outra representante da oposição, desta feita Corina Yoris, de participar da disputa. A filósofa Yoris era uma indicação da ex-deputada María Corina Machado, líder da Plataforma Unitária e inabilitada por 15 anos pela Comissão Nacional Eleitoral. “Fiquei surpreso com a decisão”, declarou Lula na quinta-feira 28. “Primeiro, foi boa a decisão da candidata proibida de indicar uma sucessora, achei um passo importante. É grave que a candidata não possa ter sido registrada.” Amorim, atual assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, manifestou-se na sequência, em entrevista ao jornal O Globo: “Nossa preocupação é ajudar em um processo complexo, difícil, de maneira que as eleições transcorram bem”.
As declarações de Lula e Amorim, complementares entre si, dissiparam qualquer dúvida sobre a posição brasileira. Dois dias antes, o Ministério das Relações Exteriores, em nota, havia externado preocupações quanto ao descumprimento do Acordo de Barbados, assinado em 2021 pelo governo e a oposição da Venezuela, sob mediação da Noruega, a favor de eleições livres. Recebeu em troca um coice da diplomacia de Maduro. Caracas poupou o presidente brasileiro, como se o comunicado fosse divulgado à revelia do Palácio do Planalto, e acusou o Itamaraty de publicar uma declaração carregada de “ingerência”, que “parece ter sido escrita pelo Departamento de Estado dos EUA, onde são emitidos comentários com profunda ignorância” a respeito da realidade política do país.
O Brasil não foi o único aliado a estranhar o cerceamento à oposição. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, fez idênticos reparos ao processo eleitoral venezuelano e aumentou o isolamento de Maduro na comunidade internacional. O Parlamento Europeu, que em ocasiões anteriores produziu relatórios brandos, quando não simpáticos, a respeito da situação política no país, também foi enfático na condenação aos obstáculos impostos aos direitos dos opositores. Aprovaram o texto ácido 497 dos 546 eurodeputados, o que inclui votos da centro-esquerda e da esquerda. “O governo Maduro continua a violar os direitos humanos e as liberdades do povo, perseguindo líderes políticos e ONGs”, afirmou Dita Charanzová, parlamentar da República Tcheca.
A posição brasileira amplia o isolamento internacional de Caracas
Diante das crescentes pressões, o venezuelano voltou a acusar os Estados Unidos de interferência. “Começou o circo, começou a campanha”, discursou na segunda-feira 1° em rede nacional de televisão. “Há nervosismo em Washington, há nervosismo nos sobrenomes da oligarquia, há nervosismo na direita regional, deixem de ser nervosos. A Venezuela tem o sistema eleitoral mais confiável, transparente e auditado do mundo, e o que vai acontecer está marcado entre o Céu e a Terra, parem com as campanhas.” No mesmo dia, a oposição apelou novamente à mediação da Noruega. “O acordo tem sido violado. O objetivo era garantir eleições livres e justas e, cinco meses depois de ter sido assinado, foi infringido o direito dos venezuelanos a escolher um candidato. Maduro tem procurado impedir, por todos os meios, a minha participação como candidata presidencial das forças democráticas”, escreveu Machado. O país irá às urnas, em princípio, em 28 de julho.
Não chegam a surpreender as recentes decisões da Justiça Eleitoral. Em janeiro, Maduro denunciou uma suposta conspiração da CIA para matá-lo. Haveria dois outros alvos: o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, e o governador de Táchira, Freddy Bernal. Por conta das ameaças, o presidente venezuelano disse à época que o Acordo de Barbados estava “ferido mortalmente”. “Declaro-o em terapia intensiva, apunhalado, chutado”, prosseguiu. “Tomara que possamos salvá-lo e impulsionar, por meio do diálogo, grandes acordos de consenso nacional, sem planos para me assassinar, nos assassinar ou encher a nação de violência.”
A prisão, no domingo 31, do youtuber Oscar Alejandro Pérez, só fez aumentar a tensão e o ruído internos. Pérez, ferrenho opositor com 2 milhões de inscritos em seu canal, é acusado pelo Ministério Público de terrorismo. Segundo as autoridades, o influenciador sugeriu em um vídeo a instalação de uma bomba no edifício onde supostamente são processadas as operações de crédito e débito do país. O intuito seria derrubar o sistema bancário venezuelano, provocar o caos e levar a um golpe contra o governo. Pérez, que vive entre Miami e Caracas, acabou libertado na segunda-feira 1°, após prestar depoimento e prometeu aos seguidores detalhar em breve o dia na cadeia. •
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pedra no sapato’
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