Política
Pensão Orbán
A estadia de dois dias na embaixada da Hungria complica ainda mais a situação de Bolsonaro


Em 12 de fevereiro, segunda-feira de Carnaval, a Polícia Federal informou à Infraero, estatal administradora do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, que dali a dois dias Jair Bolsonaro embarcaria rumo a Brasília. A viagem havia sido comunicada à PF durante os festejos. O time do capitão pedia um atendimento especial, a fim de “evitar abordagens indevidas e exposição do ex-presidente em locais de maior movimentação, adequando-se assim à sua proteção física”. “No entanto, o embarque não ocorreu, conforme informado também pela Polícia Federal”, declarou a Infraero na Quarta-Feira de Cinzas, data do voo. Mudança de planos? Ou encenação bolsonarista?
O capitão estava na capital brasileira havia ao menos dois dias. Às 21h37 de 12 de fevereiro, entrara na embaixada da Hungria, nação governada por um “irmão” da extrema-direita há 14 anos. Em 8 de fevereiro, Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, tinha saído em apoio a Bolsonaro nas redes sociais. “Um patriota honesto. Continue lutando, senhor presidente!” Era um comentário a propósito de uma operação da PF daquele dia, a Tempus Veritatis, sobre a tentativa do brasileiro de, com endosso de certos militares, reverter na marra o resultado da eleição de 2022. A operação levou o ex-presidente, que estava na cidade fluminense de Angra dos Reis, a decidir ir a Brasília. E foi o motivo, tudo indica, de ter procurado a embaixada húngara para se refugiar.
Sem benefícios. Cid voltou à cadeia e corre risco de ficar sem o acordo de delação premiada, após o vazamento dos áudios – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara
Na batida de 8 de fevereiro, quinta-feira de pré-Carnaval, a PF recolhera o passaporte de Bolsonaro, com autorização de Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. A apreensão havia sido requisitada pela polícia e tivera a concordância do procurador-geral da República, Paulo Gonet. Motivo do confisco: impedir o ex-presidente de deixar o Brasil e escapar de eventual condenação pela tentativa de golpe, uma das diversas encrencas nas quais está metido. Sem passaporte, restaria escapar para um país do Mercosul, onde um brasileiro pode ingressar só com RG. Quem sabe a Argentina, de outro mandatário de extrema-direita, Javier Milei, em cuja posse, em dezembro, o capitão e Orbán se encontraram. Ou então ele poderia buscar asilo em terra de governante “irmão”.
Bolsonaro permaneceu na embaixada húngara por dois dias. Deixou-a às 16h14 de 14 de fevereiro. Sua presença foi gravada por câmeras internas de segurança e as imagens acabaram reveladas pelo jornal The New York Times na segunda-feira 25. Como chegaram a jornalistas? Com apoio dos Estados Unidos e seu serviço secreto seria simples, comenta um delegado da PF. O governo Joe Biden, recorde-se, desencorajou militares brasileiros a abraçar o golpismo. Em novembro, o democrata tentará a reeleição contra Donald Trump, político da estirpe de Bolsonaro, Milei e Orbán. Sem apoio norte-americano, prossegue o delegado, seria impossível obter imagens internas de uma embaixada, não cabe requisição policial, na prática é território estrangeiro. A única opção seria pedir cooperação internacional a um país que, provavelmente, não iria querer colaborar.
No dia da divulgação das imagens, o Ministério das Relações Exteriores convocou o embaixador da Hungria em Brasília, Miklós Halmai. Atitude de caráter simbólico. No mundo diplomático, significa contrariedade. Não foi a primeira vez que Halmai teve de ir ao Itamaraty por causa do capitão. Aquele comentário de Orbán em 8 de fevereiro tinha tido a mesma consequência. Nas duas ocasiões, o diplomata apresentou-se à secretária de Europa e América do Norte do Itamaraty, Maria Luisa Escorel de Moraes.
Deu no New York Times. Imagem de Bolsonaro na embaixada da Hungria – Imagem: Redes sociais
Segundo um diplomata a par do teor da conversa de agora, Halmai ficou praticamente em silêncio. Falou só quando confrontado com o fato de que não era normal uma embaixada abrir as portas a um investigado, cujo passaporte havia sido recolhido quatro dias antes e com dois colaboradores presos pela polícia (Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais da Presidência, e Marcelo Costa Câmara, coronel do Exército que também foi do governo). Quando falou, Halmai teria dito o mesmo que a defesa de Bolsonaro, algo que se verá a seguir. Na reunião, a representante brasileira teria deixado ainda um recado nas entrelinhas: país com déficit democrático, como a Hungria, não pode ser árbitro de conflitos judiciais e políticos de outro.
Na terça-feira 26, Orbán enfrentou protestos de rua. Os manifestantes pediam sua renúncia, em razão de um escândalo de corrupção (um ex-assessor do governo acusou um auxiliar do primeiro-ministro de tentar interferir num certo rolo). No Itamaraty, a avaliação é de que beira o impossível Halmai ter agido sem autorização do premier. O Supremo, afirma um diplomata, tem poder para requisitar ao governo húngaro, via “carta rogatória” despachada pelo Itamaraty, informação sobre um eventual pedido de refúgio por Bolsonaro nos dias em que o capitão esteve na embaixada.
O que o Supremo fez, por enquanto, foi dar 48 horas para o ex-presidente explicar por que passou dois dias por lá, prazo que venceria após a conclusão desta reportagem, na manhã da quarta-feira 27. A PF também pretende averiguar as circunstâncias da estadia. Os advogados do capitão sustentam que o cliente foi à embaixada “para manter contatos com autoridades do país amigo, inclusive o primeiro-ministro (Orbán)”, que “conversou com inúmeras autoridades do país amigo, atualizando os cenários políticos das duas nações”, e que ficou hospedado “a convite”. “Quaisquer outras interpretações”, escreveram em nota, “são, na prática, mais um rol de fake news”.
As interpretações classificadas pelos causídicos Daniel Tesser, Fábio Wajngarten e Paulo Amador da Cunha Bueno de fake news são óbvias até para uma criança: Bolsonaro buscou asilo ou sondou o terreno para o caso de vir a solicitá-lo, pois estava, e está, em situação delicada. A apreensão do passaporte dias antes era para segurá-lo no Brasil. Na hipótese de haver risco de fuga, a polícia poderia pedir e o Supremo decretar sua prisão preventiva. Uma das justificativas para esse tipo de prisão é justamente prevenir a evasão de um suspeito.
Quem está em cana preventivamente, e de novo, é o ex-chefe dos ajudantes de ordens da Presidência de Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Mauro César Barbosa Cid. A decisão do Supremo não havia sido divulgada até a quarta-feira 27, mas se sabe a linha geral da ordem de prisão: obstrução da Justiça e desobediência de medidas cautelares impostas pela Corte ao militar quando de sua liberação, em setembro do ano passado, em decorrência de um acordo de delação firmado com a PF. Na origem da nova prisão, há um mistério similar àquele sobre as imagens da embaixada da Hungria: quem gravou Cid durante uma conversa aparentemente por telefone? E quem passou o conteúdo à revista Veja, que a reproduziu em parte em 21 de março?
É possível concluir pelo conteúdo do áudio que Cid queria justificar-se perante o interlocutor sobre a razão de ter delatado. “Eles estão com a narrativa pronta. Eles não queriam saber a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa deles. Entendeu?”, diz em um dos trechos. “Eles” são os policiais que tomaram seus depoimentos na delação. “Se eu não colaborar, vou pegar 30, 40 anos (de prisão). Porque eu estou em (investigação sobre cartão fajuto de) vacina, eu estou em joia.” No caso da carteira fajuta, a PF finalizou o inquérito em 18 de março e concluiu que Cid cometeu quatro crimes (e mais de uma vez). Cabe ao procurador-geral decidir se o leva ao banco dos réus. O caso do comércio de joias recebidas por Bolsonaro quando presidente ainda está sob investigação. Na terça-feira 26, o pai de Cid, general Mauro César Lourena Cid, foi interrogado. Sua conta bancária foi usada para receber 68 mil dólares do comércio de joias. O general é amigo de Bolsonaro e no governo do capitão comandou o escritório de Miami da Apex, a agência de promoção de exportações.
Mauro Cid, o delator, voltou à prisão depois de fazer um “desabafo”
“O Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação”, diz Cid em outro momento da gravação. E fez uma revelação surpreendente: “Quando eu falei daquele encontro do Alexandre de Moraes com o presidente… eles (policiais) ficaram desconcertados, desconcertados…. O presidente encontrou secretamente com o Alexandre de Moraes na casa do Ciro Nogueira.” Nogueira é senador e foi o último ministro da Casa Civil de Bolsonaro.
“A grande questão é a origem da gravação, é saber quem a fez e como ela veio a público”, afirma o advogado criminalista Pierpaolo Bottini. “Quem gravou pode ser tanto o interlocutor (do Cid na conversa) quanto a polícia. No primeiro caso, ressalvada a hipótese de que a gravação tenha sido feita para fins de autodefesa do interlocutor, é prova nula. No segundo caso, precisa-se saber se havia autorização de interceptação telefônica, para validar a prova”, diz Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça. Um advogado criminalista que atua nos tribunais em Brasília aposta que o vazamento teve anuência de Cid. Faria parte de uma estratégia de longo prazo do militar: criar argumentos para, no futuro, pedir a suspeição de Moraes e, com isso, a anulação de eventual condenação. Não só para o ajudante de ordens, também para Bolsonaro.
Cid teve de comparecer ao Supremo em 22 de março para depor a um juiz auxiliar de Moraes, Airton Vieira, a respeito da conversa gravada. Negou ter sido coagido pela PF e reafirmou interesse em manter a delação. Disse que o que falou na conversa foi um “desabafo”. Indagado sobre quem seria o interlocutor, disse não saber. Seus contatos, desde que foi libertado e passou a cumprir prisão domiciliar, declarou, são alguns familiares, amigos, amigos militares e amigos de equitação. Após o depoimento, teve a prisão preventiva decretada.
Encalço. A PF de Rodrigues vai ouvir Bolsonaro sobre a estadia na embaixada – Imagem: Tom Costa/MJSP
Na PF, comenta-se que a gravação e sua divulgação compõem uma estratégia atrapalhada da defesa de Cid (o tenente-coronel voltou a ser preso) ou resultaram de uma casca de banana jogada para o militar. Esta última hipótese refere-se aos “kids pretos”, aqueles fardados das Forças Especiais do Exército especialistas em operações clandestinas e em manipulação da opinião pública. Vários “kids pretos” são coronéis e participaram da conspiração golpista de Bolsonaro contra o resultado da eleição.
Certo é que a conversa de Cid dá combustível à tese de perseguição aventada pela defesa de Bolsonaro. “Chega de perseguir, dá um pouco de paz para a gente”, disse o capitão na segunda-feira 25, a propósito das explicações requeridas pelo Supremo a respeito de sua estadia na embaixada húngara. “É algum crime, por ventura, dormir na embaixada e conversar com embaixador?” Sem a conversa de Cid ter vindo a público, haveria clima político mais favorável para uma prisão preventiva do capitão, após a revelação da passagem do ex-presidente pela embaixada da Hungria. Haveria alguma ligação entre os dois acontecimentos? É uma dúvida. •
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pensão Orbán’
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