CartaCapital
Casa da sogra
O Brasil é marcado por suas mazelas, da chegada das naus portuguesas ao golpismo imanente


CartaCapital, desde o lançamento, lá se vão 30 anos, nunca se furtou a apontar as desgraças sofridas pelo Brasil ao longo de sua história. Foi a pretensão portuguesa que, graças a um vento muito providencial, enfurnou as velas da frota de Pedro Álvares Cabral, enquanto descia ao longo das costas africanas em busca do caminho das Índias, passando pelo Cabo da Boa Esperança. De verdade, o Brasil foi descoberto por Americo Vespucci, a serviço da corte portuguesa, o que inflou os efeitos deploráveis de uma desgraça, que se inicia com a dinastia de Avis, conforme a impecável obra-prima de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder.
Segue-se uma colonização predatória que, entre outros lances, se aproveita do ouro e da prata brasileiros para reconstruir Lisboa, destruída em boa parte por um terremoto em meados do século XVIII. Acentua-se o desmando lusitano com a escravidão, que abduz do continente africano milhares de habitantes para substituir o braço da população indígena infensa ao trabalho do homem branco. Milhões de passageiros cativos nos navios negreiros desceram até o Brasil colônia. Estima-se que, entre os séculos XVI e XIX, foram trazidos para cá cerca de 4 milhões de africanos, contingente a incluir homens, mulheres e crianças, equivalendo a mais de um terço de toda a atividade escravista da época. Leve-se em conta que aos Estados Unidos aportaram menos de 400 mil, um décimo dos escravos mandados ao Brasil. Idas e vindas de navios negreiros caracterizaram a travessia atlântica e foi também graúdo o número de mortos nas galés.
A terceira desgraça foi a transferência da corte portuguesa em peso para o Brasil, primeiro em Salvador e, finalmente, no Rio de Janeiro. À frente dos fugitivos estava D. João VI, célebre por sua ojeriza ao banho, em retirada desde que se aproximou da fronteira lusitana o exército francês comandado pelo general Junot, portador da ideologia liberal de Napoleão.
Não houve benefícios com a chegada do monarca, muito ao contrário. Ainda assim nasceu, com a presença do filho do rei, D. Pedro I, a vontade da independência, enquanto o jovem herdeiro do poder sonhava com seu retorno a Portugal para suceder ao pai. Dom Pedro não desistiu desse seu objetivo de independência e a conquistou nas alturas paulistanas do Ipiranga ao cabo de uma subida íngreme da Serra do Mar enfrentada na cela de um muar. A iconografia oficial, obviamente laudatória, se compraz em conferir ao evento a grandiosidade que ele não teve. De fato, a independência foi praticamente despercebida pela população daquele tempo, cuja ignorância reinava impassível tanto na casa-grande e na senzala quanto nos sobrados e mocambos.
D. João VI fugiu da modernidade e se escondeu no Brasil – Imagem: Pintura de Albertus Jakob Franz Gregorius
A vinda de D. João VI de alguma forma é simbólica no sentido de que os ideais revolucionários que Napoleão espalhara pela Europa não chegaram a Portugal e, portanto, ao Brasil. Por princípio, a democracia é um valor que começa pela firmeza das leis e pela igualdade entre os habitantes de uma nação. O Brasil continua muito longe desta condição. Seu povo hoje em dia vive da pior maneira, massacrado pela falta de políticas sociais definitivas e pela presença de uma minoria largamente abastada e totalmente insensível. Muitos poderes exorbitam e fazem do País aquilo que outrora era definido como a casa da sogra.
Estamos para alcançar o adversário que resultou numa ditadura feroz e sanguinária. A tortura dos estudantes foi empregada mais frequentemente do que se supõe. Além de tudo contamos com torturadores eméritos. Um deles, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, atendeu ao chamado chileno, por terem lhe atribuído mestria no seu desempenho, a ponto de ser convocado pelas forças armadas que Augusto Pinochet já comandava, uma ditadura sangrenta que logo de início aprisionou 40 mil chilenos no estádio de Santiago. Missing, filme do diretor Costa-Gavras magistralmente interpretado por Jack Lemmon, no papel do pai que vai em busca do filho sumido entre os presos no referido estádio, registra instrutores brasileiros a ensinar técnicas de tortura aos verdugos de Pinochet.
No Brasil, as pressões dos fardados provocaram o fim do emprego de muitos cidadãos. No meu caso, posso dizer que as circunstâncias me obrigaram a sair da revista Veja, que dirigia. Anos depois, recebi a informação de que, numa reunião com amigos, depois de sair pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, o derradeiro ditador, João Figueiredo, disse que seu antecessor, Ernesto Geisel, me detestava. Disse ainda que o meu papel numa redação fora simplesmente o de jornalista, ao mesmo tempo que se referia também a alguns senhores da mídia: “Os Civita e outros empresários de imprensa me visitavam para pedir favores, Mino Carta nunca me pediu coisa alguma”. •
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Casa da sogra’
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