

Opinião
Boleiro raiz
Dorival deu início ao trabalho com sua característica básica, a simplicidade. Não fez palestras motivacionais nem se apresentou como “comandante”


O desenrolar dos casos Robinho e Daniel Alves nos deixa uma sensação de tristeza e revolta, pelo fato de expor as contradições que hoje marcam o esporte.
O esporte deve ser, em sua essência, sinônimo de alegria, saúde e libertação, não isso que temos visto: uma atividade que, contaminada pelo que de pior nos trouxe o liberalismo, espelha o nosso desarranjo social.
Outro reflexo dessa situação se deixa ver pelo caso de z\, que, embora bem menos violento, é esdrúxulo e só se pode explicar pela prepotência.
O atleta do Flamengo foi suspenso por dois anos por fraude no antidoping – no ano passado, ele atrasou a realização do exame-surpresa realizado no Ninho do Urubu.
Entre tantos acontecimentos lamentáveis, o esporte voltou a nos mostrar sua razão de existir, com as promessas da renovação se materializando nos amistosos da Seleção, marcando o início do que os comentaristas esportivos têm chamado de “Era Dorival”.
A escolha de Dorival Júnior mostrou-se feliz com a estreia em dois jogos de alto risco. O balanço final das partidas contra Inglaterra e Espanha foi, no mínimo, auspicioso – não só pelos resultados, mas pelas mudanças de rumo apontadas nesta primeira convocação.
Dorival começou o trabalho com sua característica básica, a simplicidade. Ele, primeiro, bota a bola no chão, tratando essencialmente do futebol, sem se deixar impactar ou influenciar pelos tantos itens acessórios que envolvem os jogadores atualmente.
Nascido no meio futebolístico, Dorival tem a bola no sangue. É sobrinho do querido Dudu – ídolo do Palmeiras nos anos 1960 e 1970 – e parceiro de meio-campo do sensacional Ademir da Guia, da lendária Academia do Palmeiras. Trata-se, portanto, de um boleiro raiz – para usar a expressão hoje em voga.
O novo treinador não se furta a ouvir os jogadores e não tem qualquer resquício da postura autoritária de “comandante”. No vestiário, antes de o time entrar em campo, reforçou a orientação, acompanhada pela imprensa, de que tudo que acontece fora do campo – como as entrevistas – depende do que se consegue dentro dele. O que importa, portanto, é a concentração no jogo.
Em microfone aberto, o treinador expressou-se assim, ao despachar seus jogadores para o campo: “Vai pra cima, improvisa. Perdeu, volta todo mundo. Se ajudem!”
Esta frase, para mim, é o resumo da sua concepção do papel que um treinador deve ter depois de ter feito o trabalho de preparação. Nada das horríveis “palestras motivacionais” neuróticas, fanáticas, enlouquecedoras.
No dia seguinte ao jogo contra a Inglaterra, ele, em longa entrevista, falou sobre sua preferência pelo comportamento dos jogadores em detrimento dos números – sem desconsiderar a importância das estatísticas na hora das avaliações.
Ao longo de toda a conversa com os jornalistas, mostrou sua capacidade de organização passo a passo na evolução da equipe. Usou várias vezes a expressão “dar mais um salto”, tendo em mira a conquista final.
Na contramão da “robotização” dos jogadores, tão em moda, Dorival mostrou, mais uma vez, equilíbrio ao confirmar que o jovem Endrick começaria no banco de reservas contra a Espanha, mesmo após a façanha espetacular de marcar o gol da vitória brasileira contra a Inglaterra no carismático Estádio de Wembley.
Pois não é que, ao sair do banco, no segundo tempo, Endrick fez o raio cair duas vezes ao, no magnífico estádio no Santiago Bernabéu – do Real Madrid, seu time a partir de julho –, fazer o gol de empate? Foi um arremate sensacional, um chute dificílimo. Nem em sonho.
As presenças de Bruno Guimarães, Andreas Pereira, Lucas Paquetá, Rodrygo e Vinicius Júnior também foram muito boas de se ver. O melhor de tudo, depois de uma partida disputada de forma aguerrida do início ao fim, cheia de nuances espetaculares, foi ter de volta a esperança no futuro da nossa paixão nacional. •
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Boleiro raiz’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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