Cultura
Envergonhar para lucrar
Cathy O’Neil, escritora e matemática, mostra como a vergonha é fabricada e explorada em diversos setores e, em especial, nas redes sociais


Cathy O’Neil é escritora, matemática e autora do best seller Algoritmos de Destruição em Massa (Editora Rua do Sabão). Seu último livro, lançado agora no Brasil, se chama A Máquina da Vergonha e analisa as formas pelas quais a vergonha é fabricada e explorada em diversos setores – de prisões e sistemas de segurança social a redes sociais – para fins coercitivos e comerciais.
Na visão da autora, uma intenção comum às “máquinas da vergonha” é a transferência da responsabilidade sobre os problemas sociais das instituições para os indivíduos.
The Observer: Este livro é muito diferente do anterior. O que a fez decidir escrever sobre vergonha?
Cathy O’Neil: Me interessei pela vergonha durante as pesquisas para Algoritmos de Destruição em Massa. Conversei com professores que tinham sido avaliados por um sistema secreto de pontuação. Às vezes, eles eram demitidos ou tinham os contratos encerrados. Quando pediram para entender a fórmula, ouviram que era matemática e que não conseguiriam entendê-la. Isso os silenciou. Era a vergonha como mecanismo sistemático. Se você envergonha ou humilha quem não se conforma com as normas, trata-se de bullying.
TO: A vergonha é algo universal?
CO: Sim, trata-se de algo universal, mas que sempre acontece em relação a uma norma. E as normas não são necessariamente universais. No contexto da vergonha você sente que não é digno e não será amado pela sua comunidade. Você pode, portanto, tentar humilhar alguém para que se comporte bem em relação a uma norma.
TO: Você fala da exploração comercial da vergonha por “máquinas de envergonhar”. Mas será ela diferente ou maior que a exploração de outras emoções, como o desejo sexual, a vaidade e a insegurança?
CO: Acho que tudo isso tem muito a ver com vergonha. A insegurança é uma noção para você se sentir aceitável apenas de forma contingente – é, por isso, como uma ameaça da humilhação. O primeiro terço do livro refere-se às tradicionais máquinas de vergonha, como os cosméticos pensados para mulheres que os adquirem pela vergonha de parecer velhas. A seção intermediária refere-se ao modo pelo qual as big techs aproveitam a ameaça existencial que a vergonha representa para nossa psique para lucrar com as nossas interações.
A Máquina da Vergonha. Cathy O’Neal. Tradução: Rafael Abraham. Editora Rua do Sabão (312 págs., 60 reais) – Compre na Amazon
TO: Os algoritmos têm como alvo a vergonha ou pode ser qualquer coisa que seja popular?
CO: Os algoritmos são otimizados para servir às coisas que mais nos estimulam. Isso geralmente significa nos indignar a ponto de causar vergonha. Em nossa bolha de filtros, o algoritmo nos oferece a coisa mais ultrajante a que outra bolha de filtros conseguiu chegar. Temos assim a oportunidade de lançar vergonha sobre esse outro grupo, criando uma espiral.
TO: Você cita J.K. Rowling como exemplo de alguém que acha que está sendo atacada por ser poderosa, mas que, de fato, foi ameaçada e chamada das coisas mais terríveis. Quem está atacando quem?
CO: Este é um ótimo exemplo de área cinzenta. O que odeio nas redes sociais é o nível de atenção que damos a coisas que realmente não importam. Só o fato de eu saber o que J.K. Rowling pensa sobre isso é um desperdício do meu cérebro. O que desejo, com este livro, é propor uma conversa mais qualificada sobre a vergonha.
TO: Na parte sobre J.K. Rowling você cita o exemplo de George Wallace, o governador racista do Alabama, que foi baleado, ficou paralítico e depois pediu perdão por suas opiniões segregacionistas. Parece um contexto apropriado para falar sobre Rowling, que recebeu muitas ameaças de morte?
CO: Não vejo a história dessa forma. Acho que Wallace percebeu o erro de sua atitude porque Shirley Chisholm (congressista negra democrata) o visitou no hospital, e ele reconheceu sua humanidade. Foi um grande exemplo de alguém que considerou a vergonha dos seus atos passados e pediu desculpas de forma honesta, não apenas em nível pessoal, mas de justiça social.
TO: Você, no livro, discute a cultura do cancelamento. Muitas pessoas argumentam que isso não existe. Qual é a sua opinião?
CO: Me parece que ela é real. Quando você ouve as pessoas reclamarem disso, trata-se, provavelmente, de pessoas que têm os exemplos falsos, porque o simples fato de ouvi-las reclamar significa que elas têm voz e uma chance de se defender. Mas acho que a cultura do cancelamento é comum e leva as pessoas a temer falar abertamente sobre certos assuntos. Dez anos atrás, eu fazia um blog e, ali, experimentava algumas ideias. Naquela época, sentia que os leitores estavam me dando o benefício da dúvida. Hoje, seria mais difícil fazer esse blog. Acho que pessoas menos conhecidas podem ser esmagadas mais facilmente.
TO: Se houvesse uma mudança que você pudesse fazer para afetar a máquina da vergonha, qual seria?
CO: Gostaria que todas as instituições, incluindo as empresas de redes sociais, mas também as prisões, os sistemas de seguridade social e as escolas, analisassem até que ponto incorporaram a vergonha repressiva em suas políticas e práticas, e tentassem eliminá-la. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Envergonhar para lucrar’
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