

Opinião
Liberdade e arte
Os atletas do Nova Iguaçu, sem a cabeça atormentada pela grandiloquência estéril, preocupam-se apenas em jogar uma partida de futebol


O futebol brasileiro está em festa com o surgimento, nos torneios da Série A, do Nova Iguaçu, classificado para a finalíssima do Campeonato Carioca.
A classificação deu-se durante a partida realizada no domingo 17, no Maracanã, em uma tarde de calor escaldante, na qual a equipe da Baixada Fluminense bateu o Vasco por 1 a 0. Trata-se, sem dúvida, de uma façanha memorável.
O Vasco, por sua vez, parecia ter em campo jogadores que nunca haviam sido apresentados uns aos outros − fenômeno típico da presente situação do futebol brasileiro.
Mas, mais do que refletir sobre as dificuldades do Vasco, me interessa olhar para os significados da vitória do Nova Iguaçu. O jogo de ida da final entre a surpreendente equipe e o Flamengo será disputado no sábado 30. Vai ser difícil o Nova Iguaçu superar o Flamengo por inúmeras razões – mas entre elas não está a qualidade do seu futebol.
Sabemos muito bem o que significa encarar, frente a frente, um clube com a diferença gigantesca de poderio em todos os sentidos. Vou relatar um episódio muito parecido que ocorreu durante minhas passagens pelo Olaria Atlético Clube, também do Rio de Janeiro.
Pela tabela previamente agendada, o clube da Zona da Leopoldina, caso vencesse seu penúltimo jogo, disputaria a final do Carioca.
Esse resultado não apenas contrariava os interesses da “cartolagem” como credenciava o time a jogar a Taça de Ouro, que era então a divisão principal do Campeonato Brasileiro.
Lembro-me que foi um corre-corre danado, com os demais clubes grandes torcendo pelo time do estádio da Rua Bariri, uma vez que haviam sido vencidos por ele e, não estando mais na disputa, queriam ver um Davi humilhar o Golias – nesse caso, representado pelo Botafogo. As tramoias começaram pela alteração da tabela divulgada anteriormente, com a antecipação do encontro que o Olaria teria com o time da estrela solitária.
O Botafogo, à época chamado de Selefogo, contava com um quadro recheado de “feras”, tendo à frente o querido capitão Carlos Alberto, e era, disparado, o melhor time do campeonato.
Com a alteração da tabela, o Olaria enfrentou antes o time com o qual deveria cruzar na final e foi eliminado. E não foi só isso. Inventaram também um critério de última hora, ligado à arrecadação, para definir os finalistas.
A artimanha deu ensejo até a uma campanha publicitária, aproveitando a onda de simpatia provocada pelo azul e branco suburbano: quem comprasse um aparelho na loja ganhava um ingresso para o jogo contra o Botafogo, cobrindo assim o critério da arrecadação.
Essa história tem muitos ingredientes surreais, mas paro por aqui, porque o que quero dizer, no fim, é apenas que, contra tudo e contra quase todos, lá irá o brioso time da Baixada Fluminense encarar o todo-poderoso “Mengão”.
A seu favor o Nova Iguaçu tem o barulho de todos os demais clubes, amparado na fé de que futebol é coisa de momento.
E o resultado, no fundo, torna-se algo apenas passageiro diante da possibilidade de o Nova Iguaçu ficar marcado como uma luz que representa a esperança no futebol brasileiro, como forma de expressão de nossa gente, sem ser engolido pela estrutura de um negócio puro e simples.
O que mais chama atenção na equipe da Baixada é a cabeça limpa dos jogadores. Eles parecem não estar intoxicados pelas palavras de ordem hoje comuns: “intensidade” e sistemas fechados e rígidos, que levaram ao sumiço dos dribles, do improviso e da criatividade dos craques singulares.
Os jogadores do Nova Iguaçu não se preocupam com nada mais do que jogar uma partida de futebol. Não têm a cabeça atormentada pela grandiloquência estéril hoje comum no mercado da bola.
A campanha da Laranja da Baixada é um documento concreto de que ainda é possível, sim, jogar futebol com arte e liberdade. •
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Liberdade e arte’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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