Cultura
Limites aos titãs da tecnologia
A Lei dos Mercados Digitais, aprovada na Europa, é a primeira a de fato regular a atuação das seis big techs


A quarta-feira 6 foi um momento marcante para a indústria tecnológica – ou, pelo menos, para a parte dela que pretende fazer negócios nos países da União Europeia. Nesse dia, seis das maiores empresas do mundo tiveram de começar a cumprir a Lei dos Mercados Digitais (em inglês, Digital Market Act, ou DMA) da União Europeia. Trata-se da mais abrangente lei destinada a regulamentar as atividades das big techs em um dos maiores mercados do mundo.
A lei visa, entre outras coisas, promover a concorrência leal e limitar o poder de mercado das maiores empresas de tecnologia, chamadas, no jargão do mercado, de gatekeepers, ou seja, aqueles que decidem quem entra e quem sai. O texto estava em gestação há muito tempo e foi, desde o início, vigorosamente contestado pelas big techs.
Justamente por causa da pressão, o fato de ter saído do processo legislativo, em Bruxelas, com alguns dentes ainda intactos é, em si, um pequeno milagre. Mas ainda mais delicioso é ver essas gigantes anunciarem entre resmungos, mas enfurecidas, como vão acatar o que consideram uma violação de sua liberdade de fazer tudo o que quiserem.
A lei não se aplica a todas as empresas de tecnologia, mas somente àquelas com uma capitalização de mercado superior a 75 bilhões de euros, ou que tenham, pelo menos, 45 milhões de usuários e um volume de negócios anual de 7,5 bilhões de euros na União Europeia.
Na prática, isso significa que apenas Alphabet, Amazon, Apple, Meta, Microsoft e ByteDance, dona do TikTok, são atingidas pelo novo marco legal. O fato de cinco das seis empresas serem norte-americanas levou, evidentemente, a queixas de que os irritantes europeus querem boicotar as pobres e indefesas gigantes americanas. Toque de violinos.
As novas regras visam, entre outras coisas, promover a concorrência leal e limitar o poder de mercado de gigantes como Meta e Apple
A lei impõe obrigações sérias. As empresas terão de permitir aplicativos e lojas de aplicativos de terceiros em suas plataformas; fornecer dados de publicidade transparentes; permitir que os usuários desinstalem facilmente softwares ou aplicativos pré-instalados; habilitar a interoperabilidade entre diferentes serviços de mensagens e redes, permitindo que os usuários se comuniquem perfeitamente entre plataformas; e ser mais transparentes sobre como os algoritmos classificam e recomendam conteúdo, produtos e serviços.
A DMA também proíbe certas práticas dos gatekeepers, como, por exemplo, favorecer serviços próprios em detrimento dos de terceiros; envolver-se em atividades autorreferentes; e utilizar dados privativos de empresas usuárias para competir com elas. Em menos palavras, isso significa o fim dos negócios de tecnologia como eles sempre foram.
É importante ressaltar que a lei tem dentes reais. O texto dá à Comissão Europeia o poder de realizar investigações de mercado e impor multas de até 10% do volume de negócios anuais de uma empresa por descumprimento das regras. As reincidências – no que se poderia chamar de cláusula Elon Musk – podem levar a multas de até 20% da receita global de uma companhia.
Mas, afinal de contas, o que isso significará para os consumidores e usuários finais de serviços tecnológicos na União Europeia? Depende de que empresas e serviços estamos falando.
Os usuários do Android poderão escolher qual navegador e mecanismo de busca desejam utilizar e obterão mais links para sites concorrentes ao pesquisar, no Google, coisas como voos e hotéis.
Os usuários do iPhone descobrirão que a loja de aplicativos da Apple não é o único lugar onde podem baixar aplicativos e terão uma variedade maior de navegadores para escolher. Eles também poderão usar seus telefones para fazer pagamentos por meio de outros serviços que não o Apple Pay em aplicativos bancários ou transações comerciais.
Os usuários da Meta descobrirão que o WhatsApp lhes permitirá ver mensagens de outros serviços – como o Signal – e que poderão cortar a ligação entre suas contas do Instagram e do Facebook.
Os usuários da Amazon na União Europeia descobrirão que será solicitada permissão para que seus dados sejam coletados para anúncios personalizados. Isso afetará a capacidade da Amazon de obter informações a partir de seus serviços de entretenimento, que incluem Prime Video, IMDb e Twitch; de dispositivos como os leitores Kindle e os tablets Fire; além de lojas de aplicativos e sistemas operacionais.
Poderíamos continuar esta lista, mas você já entendeu. O desafio existencial enfrentado hoje pelas sociedades é saber se elas são capazes de controlar o poder tecnológico. Sabemos que isso pode ser feito, porque a China já o faz bem. O que não sabemos ainda é se as democracias liberais estão à altura da tarefa.
A importância da Lei dos Mercados Digitais é que, pela primeira vez, realmente adotamos uma medida séria sobre esse assunto. Trata-se, portanto, de uma experiência crítica para as democracias, e muita coisa depende do resultado de sua implementação. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
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