Afonsinho

Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

Opinião

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Desequilíbrio geral

Embora muito se fale em acompanhamento psicológico, uma reportagem do GE mostra que, de cada dez clubes profissionais, só 50% adotam essa prática

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Tenho insistido, aqui neste espaço, em tentar compreender este momento do mundo pela ótica do esporte – especialmente do futebol, que é a minha praia.

Um dos exemplos das confusões que nós, como sociedade, temos atravessado é a situação do América de São José do Rio Preto, apenas mais um, dentre tantos outros clubes tradicionais, com grandes conquistas e história robusta, relegados ao abandono.

Isso em um país que ainda se orgulha de se autodenominar “o país do futebol”.

Vivemos, a meu ver, um momento grave. Não se dão dois passos pelas ruas sem que se ouça uma queixa a respeito da má qualidade dos jogos e da escassez de jogadores “fora da curva”.

Sabemos que não se trata de uma exclusividade do esporte. A vida segue um processo constante de transformação e as crises também geram oportunidades.

Neste momento de auge das consequências do neoliberalismo sobre a vida humana, o reflexo no futebol é visto claramente nas brigas entre as torcidas.

Esses embates chegam a ocorrer entre torcedores de um mesmo clube e, às vezes, acontecem até entre os próprios jogadores.

Os atletas, embora não tenham os problemas financeiros que assolam boa parte da população, parecem também desnorteados ante um desequilíbrio mais amplo.

Um professor atuante em clubes na área da psicologia esportiva assim se expressou, recentemente: “Apesar de serem seres humanos comuns, os atletas lidam com um nível de pressão que não é comum em nenhuma outra profissão”.

Além do exagero que vivenciam nas demandas e nos cuidados físicos, eles enfrentam calendários insanos, decorrentes, basicamente, da ideia distorcida de se fazer dinheiro a qualquer custo.

Esse ritmo alucinado, os altos valores envolvidos nas negociações dos atletas e, como já disse, o estado geral de tensão e exposição midiática – que as redes sociais fizeram explodir – levam a transtornos na vida pessoal e no desempenho dos atletas.

Em uma reportagem publicada esta semana no site do Globo Esporte, o repórter Caíque Andrade pergunta: “É possível um jogador de futebol ter uma vida normal?”

Ele lembra que Romário deixou o futebol europeu aos 29 anos, Ronaldinho Gaúcho voltou ao Brasil aos 31, e ­Neymar foi jogar na Arábia Saudita aos 31.

“Existiria algum segredo para a baixa longevidade dos nossos craques?”, pergunta o jornalista, no texto.

Até mesmo o nosso “super-homem” português Cristiano Ronaldo, que partiu para o mundo árabe esticando sua longa e vitoriosa carreira, começa a sofrer críticas pelo fato de seu time não liderar os campeonatos daquela região.

Embora há muito se fale em acompanhamento psicológico no esporte, a reportagem cita que, de cada dez clubes profissionais, apenas 50% têm essa prática. Entre os mais pressionados pelo calendário há aqueles que fazem, antes dos jogos, “preparação mental”.

Não há como negar que a tranquilidade e a paz de espírito fazem qualquer pessoa render muito mais em seu trabalho – tenha esse trabalho a natureza que tiver.

A consciência de um momento de crise, por sua vez, leva à busca por soluções para os problemas que, em certo ponto, não podem mais ser disfarçados.

Cito os grupos Libra e Forte Futebol, que, em tese, deveriam buscar soluções, mas digladiam entre si – ora se aproximando, ora se distanciando, conforme os interesses diretos de cada um.

Esta semana, houve, na Confederação Brasileira de Futebol, uma reunião do Conselho Técnico dos Clubes das séries A e B.

O noticiário traz ainda a surpreendente manifestação da Federação dos Atletas Profissionais propondo o aumento do número de jogadores estrangeiros em cada partida de sete para nove em 2024 – cabe lembrar que, em 2023, esse número tinha saltado de cinco para sete.

A notícia inicial dava conta de serem nove estrangeiros no total. Depois da reunião, falou-se em nove de cada lado – o que parece mais lógico.

Resta saber até onde vai a força dos representantes dos jogadores.

Dentro do contexto atual, não podemos negar o quão importante tem sido a chegada das revelações dos países vizinhos na sustentação do futebol brasileiro e no fluxo dos negócios dos nossos clubes com os de fora.

Vem daí a pergunta: e as revelações locais, como ficam, se já são tantas as queixas da falta delas? •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desequilíbrio geral’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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