Cultura
Um corpo político
Às vésperas dos 60 anos, Wilemara Barros, nome-chave da dança brasileira, é homenageada no MITsp


Em meados dos anos 1970, uma adolescente dava os primeiros passos no balé em um projeto social do Sesi, voltado a filhos de operários, na periferia de Fortaleza, no Ceará. Por ser negra, era atacada pelo professor: “Você nunca será uma bailarina”.
Cinco décadas depois, Wilemara Barros é a artista homenageada da 9ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, que ocupará diversos espaços paulistanos ao longo deste mês de março. Às vésperas de completar 60 anos, em abril, ela celebra essa consistente trajetória na dança clássica e contemporânea com Preta Rainha, em cartaz durante a mostra.
O novo trabalho mergulha em suas memórias sob o viés da ancestralidade, enaltecendo-a. Esse tema não é novo em suas criações, mas chega sob um prisma hoje diferente. Dez anos atrás, por exemplo, ela havia colocado a negritude em cena em um espetáculo chamado Mulata, que fazia referência, justamente, à palavra que aquele primeiro professor usava para dirigir-se a ela.
“Só me percebi negra quando ele me chamou de mulata. Até então, essas questões não passavam pela minha cabeça”, lembra Wila, como é conhecida na cena cearense. “Comecei então a insistir no balé porque queria me provar. Quem tinha de dizer se eu poderia ou não estar nesse lugar era eu.”
A dedicação e o talento fizeram dela uma das mais conceituadas mestras de balé clássico do País, com passagem pelo Colégio de Dança do Ceará e a Companhia de Dança da Unifor e, desde 2005, o Curso Técnico em Dança do Porto Iracema das Artes, sendo responsável pela formação de centenas de pessoas.
“Não tive referências de bailarinas negras na dança clássica”, diz, voltando no tempo. “Só depois percebi que ocupar esse lugar tinha uma representatividade grande, dando margem para tantas outras crianças pensarem que poderiam estar ali.” O repertório clássico, acabou, no entanto, não sendo o seu caminho. Embora tenha participado de montagens de peças tradicionais, como A Morte do Cisne, sua principal forma de expressão estaria na dança contemporânea.
Percurso. Embora sua grande forma de expressão seja a dança contemporânea, Wila participou de montagens clássicas, como A Morte do Cisne – Imagem: Acervo pessoal
O primeiro contato com essa linguagem deu-se nos anos 1980, quando assistiu ao Ballet Stagium dançar ao som de Elis Regina. Tempos depois, experimentou a prática no Grupo Pano de Boca. Ao propor uma montagem inspirada no romance Iracema, de José de Alencar, o coreógrafo Cláudio Bernardo, radicado na Bélgica, sugeriu uma imersão em leituras sobre a história do Ceará, para então pensar na construção dos movimentos e cenas. Essa abordagem era, até então, inédita para a jovem.
A confirmação do contemporâneo se daria com a parceria com Fauller, bailarino cearense que, no início dos anos 2000, foi fazer o curso de formação de coreógrafos no Colégio de Dança e teve aulas com ela. Do encontro resultou uma união que dura 22 anos e foi responsável por transformar a vida e o trabalho de ambos.
Como bailarina da Cia. Dita, fundada por Fauller, Wila descobriu-se uma cocriadora, aportando inquietações próprias a cada montagem. Nela, o coreógrafo também encontrou uma artista sem medo de se reinventar, a despeito da diferença de idade entre os dois – ela é 14 anos mais velha que o companheiro.
Em 2003, quando dançou nua em De-Vir, houve quem decretasse o fim de sua carreira. Mas o espetáculo tornou-se uma das obras da dança cearense mais apresentadas fora de casa, levando-a para turnês em diversos estados brasileiros e países da América do Sul, África e Europa.
“Comecei a entender que a dança contemporânea me dava liberdade de estar na cena como um corpo político”, afirma. “Enquanto artista, a gente já está o tempo todo na berlinda. Então, quis fazer o que achava realmente interessante.”
Daí em diante, a potência de Wila impactaria artistas de diferentes vertentes. O estilista Mark Greiner convidou-se para estrelar desfiles e editoriais de moda e o cineasta Rosemberg Cariry chamou-a para atuar no filme Siri-Ará (2008), que lhe rendeu um prêmio de melhor atriz coadjuvante no Festival de Brasília.
“Não tive referências de bailarinas negras na dança clássica”, afirma a artista
Mais recentemente, dividiu com Fauller a preparação corporal de Marcélia Cartaxo para Pacarrete (2019), de Allan Deberton, e foi dublê da atriz no longa-metragem. “Sou uma artista da dança, mas gosto de me alimentar dessas várias linguagens”, diz. “Hoje, quando analiso o público que me acompanha, poucos são bailarinos. Acho isso bárbaro.”
Em paralelo à jornada com Fauller, Wilemara colaborou em criações com nomes de referência da dança, mas nunca deixou Fortaleza. Segundo Rosa Primo, professora do curso de Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC), esse legado é fundamental.
“É importante para o artista sair, distanciar-se daquilo a que está acostumado. Mas acho que a Wila encontrou essa desterritorialização no próprio corpo, com muito talento e esforço, sem nunca deixar as coisas se acomodarem”, diz a pesquisadora e bailarina. “Ela teve esse entendimento muito rapidamente, demonstrando uma maturidade incrível.”
Essa maturidade também determina a longevidade de uma carreira sem perspectivas de aposentadoria. “A dança deslocou o meu olhar para pensar meu lugar como mulher negra e nordestina. Você dança o que você é”, diz. “Se a sua história é verdadeira, você consegue chegar nas pessoas. Não tem como não dar certo.” •
MITSP: PROGRAMAÇÃO GERAL
Embora carregue a palavra “teatro” no nome, a 9ª edição do MITsp está cheia de coreógrafos e bailarinos na programação
Brasileiros e estrangeiros. Acorde Rompido, do sul-africano Gregory Maqoma, abre o evento, no Sesc – Imagem: Thomas Muller
Apesar de carregar no nome a palavra “teatro”, a 9ª edição da MITsp tem uma programação recheada de espetáculos nos quais os criadores se nomeiam como coreógrafos e os intérpretes, como bailarinos.
A dança sempre atravessou o evento. Mas, neste ano, ela aparece ainda com mais intensidade na Plataforma Brasil, com dez obras que serão assistidas tanto pelo público quanto por curadores nacionais e internacionais.
O corpo está no centro de todos os trabalhos, incluindo Preta Rainha, da Cia. Dita (CE), Eu Não Sou Só Eu em Mim, do Grupo Cena 11 (SC) e Dança Monstro, da Companhia dos Pés (AL). Questões sobre identidade, deslocamentos e enfrentamentos são predominantes.
“O que é mais potente é a troca, o diálogo, a permeabilidade entre todas as linguagens. A gente também pensou em tirar a MITsp do centro, e nos pareceu interessante fazer com que a linguagem do teatro, como é entendida mais convencionalmente, pudesse ser deslocada”, diz Antonio Araújo, diretor artístico da MITsp.
A seleção internacional também é permeada pela dança. Gregory Maqoma, um dos mais representativos nomes da cena sul-africana, apresenta Acorde Rompido, que abrirá o evento, na sexta-feira 1º, no Sesc Pinheiros. A obra discute o colonialismo e o apartheid por meio de uma fusão de danças tradicionais africanas e dança contemporânea.
Contado pela Minha Mãe, do libanês Ali Chahrour, também bebe da experiência do artista com o corpo em movimento, trazendo para a cena reverberações do contexto político, social e religioso de seu país natal.
No Centro Cultural Fiesp, o público poderá fazer uma imersão nas criações do sul-coreano Jaha Koo, que, na trilogia Hamartia, reflete sobre o choque entre as culturas oriental e ocidental.
Em paralelo aos espetáculos, palestras, conversas e residências fomentam debates sobre o cruzamento das artes cênicas com a realidade política e social do Brasil e do mundo. Uma das ações inclui uma aula magna do filósofo camaronês Achille Mbembe, autor de Necropolítica (N-1 Edições).
Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.