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Alvos da repressão

A Comissão de Anistia inaugura o julgamento de casos coletivos com dois processos envolvendo povos originários

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Reparação. Os Krenak e os Guyraroká aguardam retratação do Estado. A Casa da Morte de Petrópolis abrigará memorial – Imagem: Isis Medeiros/MAB e Cartografias da Ditadura
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De janeiro de 1969 a setembro de 1972, quase cem indígenas foram confinados no Reformatório Krenak, um presídio instalado pela ditadura dentro da Terra Indígena Krenak, no município de Resplendor, em Minas Gerais, com o objetivo de prender e torturar os nativos considerados “subversivos” pelo regime militar. Os motivos para a detenção eram aleatórios: iam desde “embriaguez, roubo ou homicídios”, passando por “vadiagem, saída sem autorização do Posto Indígena ou perturbação das autoridades”, até “manutenção de relações sexuais consideradas ilegítimas e pederastia”. Além dos Krenak, indígenas de outras 15 etnias e de 11 estados foram encaminhados para o local. Os dados constam em uma Ação Civil Pública do Ministério Público Federal de 2015 e que, agora, será objeto de julgamento na Comissão Nacional de Anistia, que analisará o processo em abril, juntamente com outro caso de grave violação dos direitos humanos contra os povos Guyraroká, de Mato Grosso do Sul.

Em depoimento ao MPF, Manelão Pankararu detalhou como funcionava o reformatório. Era uma “cadeia gigante”, com muitas celas. Em um claustrofóbico ambiente fechado, chamado de “cubículo”, os internos eram frequentemente torturados, inclusive com uso do “pau de arara” e outro instrumento de suplício chamado de “cachorro-quente”, que ficava vertendo água do teto sobre os cativos o tempo inteiro, por até dois dias. “Era ali que o índio tomava couro”, relatou. Os indígenas também eram submetidos a trabalhos forçados e viviam sob rígida vigilância. Aqueles com “mau comportamento” eram isolados numa solitária e privados de água e comida.

Indígenas foram torturados em presídio instalado pelo regime militar no território da etnia Krenak

Além do Reformatório Krenak, o MPF acusa o Estado de criar a Guarda Rural Indígena, fruto de um convênio entre o Secretaria de Políticas Indígenas, órgão que antecedeu a Funai, e a Polícia Militar de Minas Gerais. O alegado objetivo era prestar assistência à população indígena no estado, mas, na verdade, ela intensificou as abordagens repressivas. Geralmente, a Guarda era a primeira etapa por onde passavam os indígenas que eram encaminhados ao presídio. Outra queixa do MPF diz respeito à Fazenda Guarani, localizada no município de Carmésia, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas após a extinção do reformatório.

“Os processos de violência e expropriação contra os povos indígenas ocorreram em todo o País. Minas Gerais foi um importante palco dessa trama, cujos efeitos até hoje pesam sobre as etnias que vivem nesse Estado”, diz um trecho da ação civil, destacando também que a “ditadura, assim, estabeleceu ou aprofundou uma política de invasão de terras indígenas, quer pela retirada forçada de seus habitantes, quer pelo massacre do índio”. Maíra ­Pankararu, conselheira da Comissão de Anistia, diz que os indígenas nem sequer sabiam o motivo das prisões. “Foram retirados à força de suas terras, levados para a prisão e depois para uma fazenda.”

STF. Ação sob a relatoria do ministro pede a responsabilização de algozes da ditadura – Imagem: Nelson Jr./STF

A repressão contra os povos Krenak inaugura o julgamento de casos coletivos pela Comissão de Anistia. Antes, os processos eram individuais. “Abril é um mês de mobilização para os povos indígenas, que culmina no Acampamento Terra Livre, em Brasília. Então, é bem significativo colocar em pauta esses dois processos em análise no colegiado”, explica Maíra. Outro caso que será julgado juntamente com os Krenak é o da Terra Indígena Guyraroká, envolvendo os povos Guarani Kaiowá, da região de Dourados, em Mato Grosso do Sul. Segundo a conselheira, os fortes conflitos de terra existentes na região tiveram início no regime militar, quando a Funai atestava não haver indígenas naquela região. “A Funai dava certidões negativas de presença indígena e aí os grandes fazendeiros ocupavam, desmatavam os locais sagrados e sediavam ­suas fazendas, ­enquanto os ­Guarani Kaiowá ficavam às margens, perambulando por aquelas regiões ou servindo como peões nessas grandes fazendas”, explica, ressaltando que tanto os Krenak quanto os Guarani Kaiowá sofrem por essa perseguição até hoje.

Além das ações coletivas que passam a ser julgadas pela Comissão de Anistia, outra novidade é a análise de processos em bloco. No fim do ano passado, o regimento interno foi alterado para dar mais celeridade aos julgamentos. Em 2023, por exemplo, só foram apreciados 80 processos. Para este ano, a meta é chegar a 3 mil casos e, até 2026, ao término do mandato de Lula, julgar todos os processos, em torno de 7 mil. “Em 2026, a Comissão de Anistia vai completar 25 anos de existência. É muito tempo para concluir o processo de reparação. Com a decisão de julgar todos os requerimentos até lá, criamos uma nova metodologia de julgamento que vamos inaugurar na primeira sessão deste ano”, explica Eneá de Stutz, presidente do colegiado.

Em março, serão analisados os processos de 2001, 2002 e 2003, ações reunidas por categorias. “Se tiver algum caso ou situação com vários processos semelhantes, vamos julgar em bloco. Um processo de 2001 vai puxar todos os protocolados nos anos seguintes com o mesmo teor, porque a circunstância é a mesma”, destaca Stutz. A retomada dos trabalhos da Comissão de Anistia vai coincidir com a celebração dos 60 anos do golpe de 1964. O julgamento dos dois casos indígenas está agendado para 2 de abril, data da deposição do então presidente João Goulart, quando o Congresso Nacional decretou a vacância da Presidência da República. “A gente vai juntar várias simbologias para fazer essa reparação. Será a primeira vez que o Estado brasileiro terá de pedir desculpas para uma etnia indígena.”

Toffoli prometeu pautar audiências públicas de ADPF que pede a revisão da Lei da Anistia

O julgamento dos requerimentos indígenas pela Comissão está dentro da programação que o Ministério dos Direitos Humanos está montando para marcar os 60 anos do golpe. Está prevista também uma Marcha pela Democracia, que vai sair do Rio de Janeiro para Juiz de Fora, em Minas Gerais, o roteiro inverso ao que aconteceu em 1964, quando o general Olímpio Mourão Filho – autor do Plano Cohen, que deu sustentação à ditadura Vargas – ordenou que militares marchassem da cidade mineira até o Rio, para consolidar a tomada do poder. “Teremos a marcha reversa, em defesa da democracia”, diz o ex-ministro Nilmário Miranda, assessor da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério. Em Minas, a marcha será recebida por Maria Tereza Goulart, João Goulart e João Vicente e Denise, viúva e filhos do ex-presidente João Goulart, quando serão homenageados com outras vítimas do regime militar.

O Ministério dos Direitos Humanos também pretende inaugurar um memorial em Petrópolis, onde funcionou a chamada Casa da Morte, centro de detenção clandestino para onde muitos militantes de esquerda foram levados, torturados, mortos e tiveram seus corpos ocultados. “Foi uma decisão do alto-comando do Exército, obviamente com o apoio do general Emílio­ ­Garrastazu Médici, de se criar a Casa da Morte, porque estava ficando difícil para eles, a cada desaparecimento, ter de inventar uma nota ou uma versão oficial. Por lá não se deixavam vestígios”, descreve Miranda. Ele lembra que a residência era de propriedade de uma família alemã nazista, que a emprestou ao Exército. Segundo Miranda, mais de 20 pessoas desapareceram na Casa da Morte, algumas delas continuam sem paradeiro até hoje. “Quem fosse levado para lá ia para morrer mesmo, porque lá não tinha registro de nenhum tipo.”

Desapropriada desde 2008, a Casa da Morte vai resgatar a memória das vítimas, através de um convênio entre o governo federal, o Ministério Público Federal, a Prefeitura de Petrópolis e a Universidade Federal Fluminense, entidade que ficará responsável pelo museu. A União repassou ao município 2 milhões de reais para comprar a casa, a qual será entregue à UFF para administrar o memorial. Como o convênio foi firmado em janeiro, pouco antes de o decreto de ­desapropriação vencer, o projeto ainda está seguindo os ritos burocráticos e não tem data certa para o memorial ser inaugurado. O Ministério dos Direitos Humanos também planeja transformar a Usina Cambahyba, na cidade fluminense de Campos dos Goytacazes, em outro memorial para contar a história da ditadura. Hoje um assentamento do MST, nos anos de chumbo o local foi utilizado para incinerar os corpos de dissidentes políticos assassinados pelo regime militar. Para isso, eram utilizados os fornos da antiga usina de cana-de-açúcar.

Iniciativas. Stutz quer acelerar os julgamentos na Comissão de Anistia. Miranda organiza “marcha reversa” nos 60 anos do golpe – Imagem: Gustavo Bezerra/PT na Câmara e Cléia Viana/Ag. Câmara

Os crimes cometidos durante o regime militar também devem retornar à pauta do Supremo Tribunal Federal, que desengavetou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentada em 2014 pelo PSOL, solicitando a anulação da anistia dos agentes estatais que cometeram graves violações de direitos humanos durante a ditadura. O relator da ação é o ministro Dias Toffoli, que se comprometeu a convocar audiências públicas, ainda este ano, para discutir a matéria. “Não é necessário revisar a Lei de Anistia nem a revogar. É uma lei de memória, e não uma lei de esquecimento. Ela não impede que a gente processe torturadores, muito ao contrário. Esta é uma falsa polêmica”, defende Stutz.

Aprovada em 1979, a lei anistiou os crimes políticos de opositores do regime, mas o perdão acabou estendido aos agentes do Estado que atuaram na repressão, torturando ou matando militantes de esquerda. Em 2010, o STF ratificou a interpretação abrangente da lei, decisão criticada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ainda cobra do Brasil informações sobre os desaparecidos políticos. O pedido de revisão da Lei de Anistia também consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade. •

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Alvos da repressão’

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