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Pelas costas

Confortáveis no mercado de dívida pública, os bancos privados parecem temer a concorrência do BNDES

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Retomada. Aloizio Mercadante busca recompor as fontes de captação do BNDES, que voltou a ofertar crédito para empresas como a Embraer – Imagem: Ricardo Beccari/Embraer e Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
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Em recente pesquisa do Datafolha, 95% dos entrevistados apontaram aspectos positivos no BNDES. O levantamento mostra que o banco público é visto pela população como uma instituição que promove o desenvolvimento do País e gera empregos, além de contribuir com o desenvolvimento empresarial e da infraestrutura. O reconhecimento público de suas virtudes coincide, porém, com uma campanha de ataques promovida pelo sistema financeiro privado. A escalada, constante nos governos do PT, só arrefeceu nos governos Temer e Bolsonaro, quando as operações de financiamento de longo prazo para investimentos foram asfixiadas e não se escondia a intenção de atrofiar ou privatizar o banco.

O recrudescimento da rejeição da banca privada ao BNDES aparece em outra pesquisa, realizada pelo Banco Central e divulgada no dia seguinte ao levantamento do Datafolha. A Pesquisa ­Trimestral de Condições do Mercado de Crédito, do BC, mostra que as instituições financeiras aumentaram de 4,52 para 5,55 o grau de importância que dão à concorrência do ­BNDES. É o maior valor registrado em oito anos, em uma escala de 0 a 10. A última vez que elas deram tanto peso à concorrência do BNDES foi em 2015, com 5,58, no governo de Dilma Rousseff.

Os dados do levantamento, que ouviu executivos de bancos, foram coletados entre 8 e 19 de janeiro, antes de Lula anunciar a Nova Política Industrial, da qual o BNDES participa com crédito de 250 bilhões de reais até 2026. Caso fosse realizado após a divulgação do plano, a prever subsídios em pequena escala, é muito provável que os financistas revelassem uma preocupação ainda maior com o banco público.

Ao que parece, o setor privado quer reserva de mercado para manter as taxas de empréstimos elevadas

A conta-gotas, o governo adota medidas para recompor fontes de captação do BNDES com custos menores, indiretamente bancadas pelo Tesouro. Uma dessas iniciativas foi permitir que o BNDES captasse recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador para financiamentos à inovação com o custo da taxa referencial, que é o indexador da caderneta de poupança, mais baixo do que a regra adotada no governo Temer, a vincular os custos aos juros de títulos públicos. Ainda que a redução das taxas do BNDES se caracterize pela timidez, o sistema financeiro privado não tardou a condenar a iniciativa.

Além disso, os mesmos conglomerados atuantes no ramo de crédito às empresas seguram as taxas no alto também no segmento de crédito ao consumidor, apesar da redução da taxa básica. Segundo uma pesquisa do Procon paulista realizada em fevereiro, os seis maiores bancos do País mantêm os juros ao consumidor inalterados, apesar da queda da Selic, de 2,5% desde agosto. Com essa prática, as instituições financeiras desmoralizam o seu próprio discurso sobre seu empenho em baixar as taxas e as virtudes da suposta concorrência do livre-mercado como o mecanismo mais eficaz para reduzir os juros.

A intenção de reduzir à insignificância os bancos públicos, ou mesmo de privatizá-los, conforme anunciado quase todos os dias nos governos Temer e Bolsonaro, contrasta com o que ocorre nos paí­ses avançados e nos emergentes bem-sucedidos, a exemplo de China e Coreia do Sul. Nesses países, bancos de desenvolvimento são instituições tradicionais consideradas indispensáveis ao funcionamento da economia e não se tem notícia de sofrerem discriminação por parte do poder privado, ao menos nada semelhante ao que acontece no Brasil. Ao contrário, desempenham um papel relevante na garantia de oferta de crédito para investimentos essenciais ao desenvolvimento em setores com longo prazo de retorno, característica que sempre afugentou a banca privada.

Cabe indagar qual é a visão de concorrência dos conglomerados financeiros privados, que condenam a taxa mais baixa do BNDES em algumas operações para pessoas jurídicas, mas se negam a reduzir as suas próprias taxas para as pessoas físicas. “De 2015 a 2022, houve fortíssima redução de empréstimos do BNDES e de seu papel no financiamento de longo prazo no Brasil, com a mudança da sua taxa de juros TJLP para a TLP, uma taxa de mercado, além da devolução dos recursos aportados pelo Tesouro. Se o BNDES está operando agora a taxas de mercado, com pequenas e poucas exceções, como no caso do apoio à inovação das empresas, conforme a Nova Política Industrial, parece sem sentido essa choradeira dos bancos privados”, chama atenção Luiz Fernando de Paula, professor do Instituto de Economia da UFRJ e autor de vários livros sobre o sistema financeiro. “Será que estão com medo da concorrência? Querem reserva de mercado para manter taxas de empréstimos elevadas?” O BNDES, acrescenta De Paula, tem um corpo técnico muito qualificado para fazer seleção e acompanhamento dos projetos financiados por ele.

Contraste. O BNDES financia até a compra de veículos de transporte escolar. Apesar da redução da Selic, os bancos mantém os juros altos para consumidores – Imagem: Giovani Oliveira/Prefeitura de Boa Vista/GOVRR e Paulo H. Carvalho/Ag. Brasília

De 2015 em diante, sublinha o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp, houve uma reorganização e diversificação do mercado de crédito, em que os bancos e outros agentes privados ganharam espaço em detrimento do ­BNDES, que perdeu relevância, em parte devido a uma redução da correlação com as políticas de investimento e com a política industrial, na primeira metade de 2010, e por conta da mudança da taxa de juros, com a criação da TLP. A nova taxa oscilaria com maior marcação a mercado, isto é, com atualização diária nos preços de ativos, diferente da TJLP, que tinha uma interferência maior do governo, evitando que variasse excessivamente e permanecesse em patamares elevados.

O início dessa mudança, prossegue Ruas, nutriu-se de um cenário positivo de juros em queda. “Hoje, com taxas de juro mais elevadas, as taxas de mercado acabam ficando muito mais onerosas. O BNDES teria capacidade de oferecer juros que seriam supercompetitivos e eu acho que é daí que vem a gritaria. Os bancos privados estão vislumbrando que o retorno do BNDES pode significar uma perda de potencial de crescimento desses mercados em que eles atuam”, dispara o professor da Facamp.

Desde 2015, período em que o BNDES perdeu relevância no financiamento do desenvolvimento, outras modalidades, como o mercado de capitais e o mercado internacional, ganharam destaque, por meio de ofertas públicas, emissão de ­debêntures e de recebíveis. O movimento foi capitalizado em grande medida pelos grandes bancos privados, que são supermercados financeiros e oferecem oportunidade de financiamento que vão além do crédito bancário tradicional. “Perdeu-se ali o papel do BNDES como um emprestador relevante, porque conseguia oferecer crédito de longo prazo a uma taxa diferente da do mercado, compatível com as perspectivas de rentabilidade das empresas brasileiras não financeiras”, ressalta o economista Saulo ­Abouchedid, também professor na Facamp.

A modernização e a inovação tecnológica do setor financeiro, apontadas como um dos caminhos para baixar as taxas, não mudaram em nada a dinâmica da concorrência. A revolução tecnológica, o surgimento dos bancos digitais e o aumento da bancarização não fizeram baixar os spreads. O que mudou, sublinha ­Abouchedid, foi o acesso a novos produtos. As taxas não baixaram em consequência do “poder elevadíssimo de fixação de preços por parte dos grandes bancos e das possibilidades de rentabilidade no mercado de dívida pública”, ressalta o professor.

Pesquisa do Datafolha apontou aprovação do BNDES por 95% dos entrevistados

O mercado de dívida pública é fonte de rentabilidade altíssima no curto prazo e sem muito risco. “Essa combinação de poder de mercado elevado e a existência do segmento de títulos públicos, extremamente rentável, de baixo risco, e de curto prazo, faz com que os bancos sejam muito mais avessos a qualquer tipo de ativo com risco de crédito considerável. Essa combinação contínua é uma questão estrutural do sistema bancário brasileiro”, destaca o economista.

A concorrência não mudou o padrão, a não ser no que se refere a tarifas, concorda Ruas. No fim do ano passado, no debate sobre taxas de juro do crédito rotativo, os bancos se defenderam dizendo que a inadimplência era alta. É preciso considerar, contudo, que, na medida em que se bancariza uma população de mais baixa renda, com novos produtos e emissão de cartões em larga escala, traz-se um perfil de consumidor com possibilidade maior de ficar inadimplente, por estar em uma situação fragilizada, em empregos informais, provisórios ou precários e com um rendimento que não evoluiu de modo significativo nos últimos sete anos. Uma faixa de público que tende a ter dificuldade para pagar as contas com as flutuações econômicas. “E os bancos mantêm as taxas altas porque não querem correr risco nenhum de ficar defasados. Isso abre, porém, um hiato de spread bancário muito maior que o internacional”, ressalta Ruas.

Os bancos, detalha o economista, jogam o spread para o alto principalmente no crédito concedido para as faixas de renda das populações com condições de vida mais precárias, sem perder de vista a outra opção que tem, de rentabilizar os seus ativos no mercado de títulos públicos. Eles aproveitam quando a ­taxa de juros cai e aumentam ainda mais o ­spread, que é quando ganham mais. Quando a inadimplência sobe, até poderiam reduzir um pouco os seus ganhos, mas vão compensando ao longo do tempo e raramente ficam no campo negativo.

Ainda que os bancos privados não tenham preenchido a lacuna deixada pelo BNDES após 2015, eles aumentaram sua participação no financiamento de longo prazo oferecendo modalidades de financiamento, mesmo sem atender a uma grande parte da demanda. “Isso é um fator determinante do comportamento do investimento desde 2015. Ele ainda não voltou ao patamar de 2015 e um dos motivos é a diminuição da participação do BNDES”, destaca Abouchedid.

Escalada. Apesar da ótima avaliação popular, o banco público segue alvo de ataques do sistema financeiro privado – Imagem: iStockphoto

“Na primeira metade da década de 2010, o BNDES tinha uma postura mais plural, com o Cartão BNDES e outros recursos para micro, pequenas e médias empresas. Isso afunilou após 2015. Várias empresas que tinham acesso acabaram ficando de fora, inclusive da captação via bancos privados”, ressalta Ruas. “Esse não foi o único problema, a economia também não estava bem, mas, sem dúvida, a saída do BNDES do mercado de crédito de longo prazo gerou prejuízo para grupos econômicos e setores.”

O que fazer para resolver o problema crônico dos juros altos no País não é um desafio que comporte uma resposta simples, ressalta De Paula. Há um conjunto de fatores e um deles é extinguir a indexação financeira que ainda existe no Brasil, “uma montanha de recursos de alta liquidez e remuneração aplicados no mercado financeiro, um resquício do período de alta inflação de que ainda não nos livramos”. O custo de oportunidade de o banco emprestar é muito elevado, pois tem sempre a opção de aplicar seus recursos em títulos públicos indexados e de elevada liquidez, ou nas operações compromissadas lastreadas em títulos públicos. Assim embutem um elevadíssimo prêmio de risco em seus empréstimos.

Há necessidade de implementar uma estratégia de longo prazo de desindexação financeira, sublinha o professor da UFRJ. Mas há questões adicionais, como a alta concentração bancária, com a predominância dos “Big Five”: Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Santander e Caixa. O poder de mercado é exercido mais fortemente em alguns segmentos de crédito, como cartão de crédito e crédito rotativo – daí a resistência dos grandes bancos diante de qualquer interferência nesses mercados.

O governo e a autoridade monetária devem atuar ativamente com regulamentações que estimulem a competição nos diferentes mercados de crédito, como está fazendo recentemente no crédito consignado. O maior ativismo por parte dos bancos públicos no mercado de crédito, feito de forma bem pensada e com o devido cuidado em termos de análise de risco, também é uma estratégia bem-vinda, conclui De Paula. •

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pelas costas’

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