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No julgamento do recurso do fundador do WikiLeaks está em jogo a defesa do jornalismo

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Símbolo. Os EUA querem fazer do ativista um exemplo. Veículos de mídia tradicionais parceiros do WikiLeaks não foram incomodados pela Justiça – Imagem: Xavier Granja Cedeno/MRE do Equador
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Ao passar pelos tribunais reais de Justiça em Londres num dia de semana, você frequentemente verá pequenos grupos a segurar cartazes e distribuir panfletos sobre um caso em julgamento. Na terça-feira 20, houve muitos deles na calçada, demonstrando suas opiniões sobre um caso que tem ramificações para o jornalismo em todo o mundo. Lá dentro, num tribunal lotado, dois juízes da Suprema Corte ouviram os argumentos de um pedido de recurso para Julian Assange, o fundador do WikiLeaks, não ser removido da prisão de segurança máxima de Belmarsh para enfrentar julgamento e uma pena potencial de 175 anos de prisão nos Estados Unidos, onde enfrenta 18 acusações criminais por seu suposto papel na obtenção e divulgação de documentos confidenciais. Estes revelaram detalhes das atividades dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, incluindo ataques a civis. Também revelaram detalhes do tratamento dispensado aos prisioneiros na Baía de Guantánamo (Cuba) e ligações com atividades clandestinas no Oriente Médio.

No início deste mês, num caso não relacionado, o ex-agente da Agência Central de Inteligência Joshua Schulte foi condenado em Nova York a 40 anos de prisão por vazar informações confidenciais para o WikiLeaks.

Um aspecto fundamental da acusação de Assange é a tentativa das autoridades norte-americanas de convencer jornalistas que criticaram Assange, figura frequentemente controversa, a depor contra ele. Ao menos quatro jornalistas conhecidos foram abordados pela Polícia Metropolitana de Londres em nome do FBI: James Ball, seu ex-colega do ­WikiLeaks, que agora trabalha no Bureau of Investigative Journalism, David Leigh, ex-jornalista do Guardian e do Observer, Heather Brooke, ativista pela liberdade de informação, e Andrew O’Hagan, que tinha sido contratado para escrever de forma anônima a “autobiografia” de Assange. Todos se recusaram a cooperar com o FBI. Num artigo para a revista Rolling Stone no ano passado, Ball disse ter sido abordado pela primeira vez em 2021 e submetido a pressão, incluindo a ameaça de ele próprio ser processado.

O’Hagan afirmou que, embora tivesse diferenças com Assange, ficaria feliz em ir para a prisão em vez de ajudar o FBI. “Acrescentaria apenas: a tentativa de punir Assange por expor a verdade é um ataque ao próprio jornalismo. Noto que nenhum dos veículos da corrente dominante que publicaram o material, New York Times, Guardian e Der Spiegel, foi processado, o que demonstra que no centro desse caso há um preconceito geracional contra o jornalismo baseado na internet… Se Julian for mandado para os Estados Unidos, a Grã-Bretanha não terá conseguido proteger um dos primeiros princípios da democracia.”

Num artigo na British Journalism ­Review no ano passado, Leigh escreveu: “Ao contrário dos militares dos Estados Unidos, ele não tem sangue nas mãos”. E acrescentou recentemente: “É incrivelmente cruel e desnecessário punir Assange dessa forma”.

Um jornalista que não foi contatado e que diz que também teria rejeitado qualquer abordagem é Nick Davies, que trabalhou em estreita colaboração com Assange enquanto esteve no Guardian. “Quando publicamos esse material, tínhamos duas razões para considerar que os EUA não iriam processar Julian”, disse. “Uma delas era que, em sã consciência, eles não poderiam distorcer seu ato de espionagem como uma arma para atacar o jornalismo. A outra era que nenhum governo decente poderia processar ­Julian ignorando ao mesmo tempo o catálogo de crimes repugnantes cometidos pelas forças dos Estados Unidos e seus aliados que estávamos denunciando.”

Davies acrescenta: “Durante todos os anos de Barack Obama, essas suposições permaneceram válidas. Foi preciso Donald Trump, imoral e indecente, para derrubá-las. É simplesmente vergonhoso que o pessoal de Joe Biden use Trump como guia.”

Os EUA pressionaram repórteres a depor contra o ativista. Sem sucesso

O Sindicato Nacional de Jornalistas, assim como a Repórteres Sem Fronteiras, apoia firmemente Assange, tal como muitas organizações, entre elas a Anistia Internacional e a Human ­Rights Watch. A relatora especial da ONU para tortura, Alice Jill Edwards, instou o governo britânico a suspender a extradição, pois Assange correria o risco de receber tratamento igual a tortura.

A última batalha de extradição, a envolver o hacker Gary McKinnon, só foi interrompida em 2012 pela então ministra do Interior britânica, Theresa May. Os secretários do Interior trabalhistas haviam se recusado a intervir. Janis Sharp, mãe de McKinnon, à frente de uma luta para impedir a extradição, disse: “Os direitos humanos de Julian Assange, de sua esposa e dos seus dois filhos não estão apenas sendo ignorados, mas espezinhados. Impedir que os filhos tenham uma vida com o pai porque, em seu trabalho de jornalista, ele expôs informações chocantes de interesse público é realmente um castigo cruel e incomum”.

Além de suas desavenças com colegas jornalistas, Assange foi acusado de crimes sexuais na Suécia em 2010. Recusou-se a regressar para enfrentar acusações, sob a alegação de que isso poderia ter levado à sua extradição para os EUA, mas concordou em ser entrevistado pelas autoridades suecas em Londres, oferta não aceita. O caso gerou muitas críticas.

Jornalisticamente, o apoio veio de todo o espectro. Alan Rusbridger, editor do Guardian durante a longa saga do ­WikiLeaks, escreveu no Prospect, que agora edita: “Sei que eles não vão parar com Assange. O mundo da vigilância quase total, meramente esboçado por George Orwell em 1984, é hoje assustadoramente real”. Peter Hitchens, que não é fã de Assange, escreveu no site ­MailOnline: “Até mesmo um poodle se oporia à forma como estamos nos comportando atualmente em relação aos Estados Unidos. Estamos prestes a permitir que o governo americano chegue a este país e prenda um homem que não violou nenhuma lei britânica”. O Parlamento da Austrália acaba de aprovar uma moção por 86 votos a 42 em favor da libertação de Assange.

Todos estes, para não mencionar os muitos manifestantes que se reuniram na porta do tribunal na terça-feira 20, devem agora esperar pela decisão do tribunal supremo e pelo que esta poderá significar para Assange – e para o jornalismo. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Somos todos Assange’

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