

Opinião
Arapuca bolsonarista
Para escapar das falsas acusações de perseguição a Bolsonaro e aos seus aliados, o STF precisa manter uma atuação assertiva e, ao mesmo tempo, bem precavida
O Supremo Tribunal Federal alcançou o núcleo antidemocrático do governo Bolsonaro e o 8 de Janeiro começa a delinear-se como o ápice de um processo de erosão da democracia, a contar com a mobilização ativa de integrantes do alto escalão da administração federal e das Forças Armadas. As reações bolsonaristas não tardaram. Em tom acusatório, repetindo o brado da perseguição e da parcialidade do STF, Bolsonaro primeiro vitimizou-se, para depois convocar seu séquito para uma manifestação, cujo propósito não se mostra muito claro. Parece uma desesperada busca por apoio popular em face do agravamento das acusações de golpismo que pesam contra ele.
Da tribuna do Senado, Hamilton Mourão conclamou os militares a reagir ao que classificou de arbitrário e ilegal. Outras vozes aliadas foram ouvidas em manifestações nas redes ou inserções na imprensa. A defesa técnica de Bolsonaro também entrou em ação, ora reverberando, ora contraditando revelações das investigações e questões procedimentais da atuação do STF e, em particular, do ministro Alexandre de Moraes.
O Supremo está diante de um caso de alta voltagem política. Não se trata, contudo, de um qualquer. Embora cause certa comoção e demande atenção redobrada, não é o fato de o ex-presidente ser investigado que o caso se destaca. Na verdade, o universo de chefes de Estado processados vem crescendo na América Latina: 30% dos que iniciaram mandatos nos anos 1980 foram processados por corrupção. Esse porcentual subiu para 54%, na década seguinte, e para 56% nos anos 2000. De 2000 a 2022, nada menos que 101 presidentes foram processados. Destes, 57 foram acusados de corrupção e 29 se declaram vítimas de perseguição política ou lawfare.
A questão é que o suposto crime cometido no exercício do mandato atenta contra o próprio Estado de Direito. A denúncia de que Bolsonaro contribuiu para a erosão da democracia, induzindo a decadência gradual de seus três predicados básicos – eleições competitivas, direitos liberais de expressão e associação e rule of law – não é inédita. Assim como não o são os inquéritos no STF para apurar as condutas antidemocráticas perpetradas pelo ex-presidente e aliados. O episódio mais recente é, porém, o desdobramento de uma trama muito mais complexa.
A incumbência que o Supremo tem diante de si é das mais desafiadoras. Primeiro, porque os processos de erosão democrática nem sempre resultam em colapso ou golpe propriamente dito, quando é mais facilmente verificável a conduta da autoridade que subverteu o regime. Além disso, esses processos prezam pela aparente legalidade dos atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito, tornando mais difícil o trabalho de resistência institucional e de responsabilização dos agentes implicados. Não bastasse, o STF precisa desvencilhar-se da excessiva politização de sua atuação em um contexto de crise política, que frequentemente faculta aos tribunais a oportunidade de assumir um papel crítico e interventivo.
O STF (e o Tribunal Superior Eleitoral) foi um dos principais alvos de Bolsonaro ao longo de seu mandato, tendo de dispor de todos os meios para reforçar sua posição institucional. Da construção de coligações à estratégia retórica para o apoio público, passando pelo reforço da colegialidade, o STF buscou manter o exercício regular da jurisdição constitucional (e eleitoral), evitando retaliar diretamente o governo. Desincumbiu-se com sucesso da manutenção da integridade mínima da democracia, facultando protagonismo à soberania popular na reversão eleitoral do projeto populista de extrema-direita liderado por Bolsonaro. Contudo, isso não afasta completamente o efeito negativo das suspeitas de perseguição que Bolsonaro e seus asseclas insistem em evocar contra a Suprema Corte.
O remédio contra essa armadilha populista é uma assertividade do STF que seja tão rigorosa quanto precavida, como a que se expressou na decisão de Moraes, autorizando a mais recente investida da PF para averiguar as responsabilidades pelos ímpetos antidemocráticos do ex-presidente e de aliados. Mas também como a que vem marcando a postura contida dos ministros em geral, e de Moraes em particular, na relação com a imprensa. Se o lawfare se caracteriza pela estratégia que se utiliza de procedimentos jurídicos distorcidos para manipular a opinião pública e neutralizar líderes políticos, o antídoto se faz pela atenção ao devido processo legal associada à mais genuína prudência na condução da relação entre a Corte julgadora e a opinião pública. Afinal, canja de galinha não faz mal a ninguém. •
Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arapuca bolsonarista’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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