Educação
A tentação do proibido
A prefeitura do Rio veta uso de celulares nas escolas, mas a decisão divide especialistas


Pouco antes do início do ano letivo, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, assinou um decreto proibindo o uso de celulares e dispositivos móveis nas escolas da rede municipal. A restrição vale não apenas para as salas de aulas, mas também para os corredores, pátios e demais instalações, mesmo no horário do recreio. Medidas semelhantes vêm sendo adotadas por colégios particulares e em países como Finlândia, Holanda e Portugal, depois de uma série de estudos comprovar que a exposição excessiva às telas afeta o desempenho dos alunos e pode gerar distúrbios cognitivos e emocionais. No Brasil, a iniciativa é inédita na educação pública e visa promover uma reconexão entre os estudantes e os professores. Especialistas avaliam, porém, que a restrição pode não ser a melhor estratégia. Como lembra o velho adágio popular, o proibido é sempre muito tentador.
Renan Ferreirinha, o secretário municipal de Educação do Rio, explica que a lei foi proposta após uma consulta pública com mais de 10 mil moradores da capital fluminense. Oito em cada dez respondentes manifestaram ser favoráveis à proibição dos smartphones e tablets no ambiente escolar. Outros 11% se mostraram parcialmente a favor da iniciativa e apenas 6% foram contrários. Além disso, a medida baseia-se em estudos internacionais e na recomendação da Unesco para reduzir o uso de telas entre crianças e jovens. “Com o celular por perto, se o aluno recebe uma notificação, é como se ele estivesse saindo da sala de aula”, diz o secretário. “Nós queremos resgatar a interação humana.”
O decreto de 2 de fevereiro passa a valer 30 dias após a publicação do texto no Diário Oficial. A proibição aplica-se a todos os estudantes da rede municipal, desde a creche até o nono ano do ensino fundamental. Os celulares e demais dispositivos móveis deverão ficar guardados na bolsa ou mochila do aluno, permanecendo desligado ou no modo silencioso. Os aparelhos só poderão ser acessados sob expressa autorização de professores, caso seja necessário para alguma atividade escolar ou em situações excepcionais, devido a problemas familiares ou de saúde.
Oito em cada dez moradores da cidade se manifestaram favoráveis à restrição em uma pesquisa
De acordo com Ferreirinha, a administração municipal pretende usar os primeiros 30 dias para promover o diálogo em sala de aula com alunos e todo o corpo docente. A ideia é alertar sobre os efeitos nocivos do excesso de telas e conscientizar a comunidade escolar a respeito da medida. “A escola precisa ser um lugar que faça sentido na vida dos estudantes. O aluno precisa gostar de estar lá e sentir que está aprendendo algo novo”, explica o secretário de Educação. Para tornar a escola um ambiente mais interessante, a prefeitura aposta na construção dos Ginásios Experimentais Tecnológicos (GET), onde o estudante tem contato com diferentes formas de aprendizado pelo uso de laboratórios, atividades interativas, impressoras 3D e outras tecnologias. “Vamos lançar novas atividades, como a Olimpíada de Matemática, uma parceria com a Bienal do Livro para incluir o processo de leitura como algo fundamental, na tentativa de resgatar os alunos para a escola, porque a evasão escolar tem se mostrado um imenso desafio”. Das 1.555 escolas municipais, a ideia é transformar 200 delas em GET até o fim da gestão, atualmente há 75 em funcionamento.
A iniciativa está repleta de boas intenções, mas colocá-la em prática será muito desafiador, desabafa a professora Izabel Costa, que leciona História na rede municipal carioca. “É uma situação delicada. A proibição por si só não educa nem resolve os problemas pedagógicos. Claro que nenhum professor ou diretor de escola vai colocar-se contra a proibição, mas precisamos trazer outros elementos, a questão é bem mais complexa”, alerta Costa, que também é dirigente do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro, o Sepe.
Pesquisas encomendadas pela Unesco e pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) demonstram que a exposição excessiva aos dispositivos eletrônicos causa dificuldade na concentração, além de problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e déficit de atenção. Com base na experiência em sala de aula, a professora é taxativa ao dizer que esse cenário não será resolvido proibindo o uso dos aparelhos. “Não podemos olhar para um aluno com ansiedade e achar que lhe tirar o celular vai resolver. É um problema maior que está se impondo, toda a sociedade precisa se mobilizar para lidar com isso.”
Na pandemia, os smartphones e tablets eram vistos como aliados no ensino à distância. A simples proibição não resolve o problema, avaliam Ana Paula Corti, do IFSP, e Márcia Jacomini, da Unifesp – Imagem: Daniel Guimarães/Educação SP/GOVSP e Redes Sociais
A escola onde Costa trabalha foi transformada em GET. Ela vê com bons olhos a iniciativa, mas observa que a estrutura ainda não é suficiente para atender todos os alunos. Além disso, destaca que o celular pode ser um aliado no aprendizado, desde que usado da forma correta. “Não podemos achar que é possível eliminar os celulares do processo educativo. É uma ferramenta que faz parte da vida das pessoas, os alunos precisam aprender a usá-lo”, avalia. Segundo ela, muitos estudantes usam os smartphones apenas para acessar redes sociais e o WhatsApp, mas não sabem nem sequer fazer uma pesquisa escolar. “Muitas vezes eles estão conversando com o colega ao lado. Pelos aplicativos de mensagens, é comum ocorrerem situações de bullying, então o uso dos celulares precisa mesmo ser controlado. Mas o aluno precisa também aprender a usar o telefone a seu favor. A escola deveria contribuir com esse aprendizado.”
Com o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19, as plataformas digitais foram fundamentais para a continuidade do processo escolar. Depois do retorno às aulas presenciais, ficou evidente que o uso desses dispositivos precisa ser regulado. “Está claro que o abuso de telas tem acarretado prejuízos do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, na interação e até mesmo na construção da sensibilidade e das relações humanas, mas proibir o uso não me parece o melhor caminho. Acho muito difícil isso funcionar em sala de aula”, opina Ana Paula Corti, professora do IFSP e integrante da Rede Escola Pública e Universidade, a Repu. Para a educadora, a proibição não se sustenta na prática cotidiana. “A escola também é um espaço onde os problemas devem ser resolvidos de forma democrática. Isso pressupõe que a gente não apenas obedeça às regras, mas questione se elas são justas e necessárias. É importante que as crianças e adolescentes tenham essa visão crítica e participativa do processo.”
Márcia Jacomini, professora do Departamento de Educação da Unifesp, concorda com a avaliação da colega. “Podemos ficar com a sensação de que a proibição resolveu o problema, ao menos durante o período das aulas, mas e depois? Se o aluno não estiver convencido sobre a importância da medida, ele vai passar todo o resto do tempo no celular”, observa. A especialista acrescenta que a exposição excessiva às telas atinge não apenas os jovens, mas também os adultos. O conjunto da sociedade precisa debater essa demanda com a complexidade que ela exige. “A questão posta é: como podemos fazer uso equilibrado desses dispositivos eletrônicos? Não vamos aboli-los, eles fazem parte da vida contemporânea.”
Na contramão da regulação está São Paulo, que cada vez mais impulsiona o uso de telefones em sala de aula. Atualmente, existem 14 plataformas digitais e para ter acesso ao conteúdo pedagógico, em alguns casos, o aluno é obrigado a acessar esses canais. Nem sempre o estudante tem um aparelho apto a tal necessidade, ao mesmo tempo que a escola não oferece a estrutura necessária. Em decorrência dessas medidas, amplia-se a discriminação digital, explica Jacomini. “O processo educativo, se você quer que ele seja justo e democrático, não pode impor situações em que alguns estarão de fora. Se a escola não tem condições de garantir acesso à internet, ela não pode plataformizar o ensino, como está acontecendo em São Paulo”, critica. “O desafio está na dosagem, não existe resposta pronta.” •
Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.
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