Mundo
Nós contra eles
Trump amplifica o discurso de ódio contra os imigrantes, a quem acusa de “envenenar o sangue” do país


Donald Trump nunca escondeu o desprezo pelos imigrantes. Em 2016, quando foi eleito presidente dos Estados Unidos, usou do terror e da barbárie para dissuadir aqueles que tentavam a sorte no país. Após a inesperada vitória, houve quem acreditasse que as ameaças do líder republicano não passassem de blefe, mas logo na posse provou-se o contrário. Trump alterou o sistema de imigração, limitou as viagens de muçulmanos e criou uma política de “tolerância zero” na fronteira com o México, trajeto da maioria dos migrantes ilegais da América Latina. Encerrou o mandato sem concluir o muro que tanto prometeu na campanha e deixou a Casa Branca à sombra de crianças encarceradas e adoecidas após serem separadas de seus cuidadores.
A gestão tenebrosa e xenófoba poderia ter sido o prelúdio do fim do líder republicano. Trump foi o primeiro presidente na história norte-americana a não se reeleger. Perdeu a eleição de 2020 para Joe Biden e tinha pela frente um futuro repleto de processos judiciais. Mas na política nada é certo e o ódio pelos estrangeiros era um bueiro muito antes da crise migratória, o que dá ao ex-presidente o impulso necessário para voltar à cena.
Trump entendeu o recado há tempos. Ainda em 2016, em entrevista a The New York Times, o então candidato à Presidência mostrou que sabia como incendiar seu público. “Sabe, se ficar um pouco chato, se eu vir pessoas começando a pensar em ir embora, eu apenas digo: ‘Vamos construir o muro!’ E eles enlouquecem.”
Na pré-campanha deste ano, uma versão ainda mais grotesca e autoritária do republicano ganha forma. Em dezembro do ano passado, durante um comício em New Hampshire, Trump disse que quem cruza ilegalmente a fronteira para os Estados Unidos está “destruindo o sangue do nosso país”. Na Flórida, comparou imigrantes ao serial killer e canibal fictício Hannibal Lecter. “É isso que está entrando no nosso país neste momento.” Para não deixar dúvida, o ex-presidente repetiu os termos em uma postagem na rede Truth Social em letras: “A imigração ilegal está envenenando o sangue da nossa nação. Eles vêm de prisões, de instituições mentais, de todo o mundo”.
O economista Ran Abramitzky, da Universidade de Stanford, tentou demonstrar a falta de embasamento científico e histórico das afirmações. Em julho, Abramitzky divulgou um estudo revelador: de 1880 até hoje, os imigrantes têm menos probabilidade de ser presos do que os indivíduos nascidos nos EUA. Atualmente, os imigrantes têm 30% menos probabilidade de ser encarcerados do que brancos nascidos nos EUA. Quando a análise inclui os negros norte-americanos, cujas taxas de prisão são mais elevadas, a probabilidade de um imigrante ser encarcerado é 60% menor.
O republicano promete, se eleito, promover a deportação em massa de estrangeiros
Para Trump e seus seguidores, a ciência não faz o menor sentido quando se pensa com o estômago. Em entrevista à rede Fox News em 5 de dezembro, Trump anunciou a intenção de promover uma repressão generalizada à imigração, incluídas prisões e deportações em massa. Em setembro, durante um ato de campanha em Iowa, o ex-presidente disse se inspirar no modelo de Dwight D. Eisenhower, uma campanha de 1954 que perseguiu, prendeu e expulsou imigrantes mexicanos. A versão repaginada de 2025, segundo ele, caso vença as eleições, será “a maior operação de deportação doméstica da história americana”.
Para quem viveu os quatro anos sob administração de Trump sabe que o Departamento de Imigração realizou operações de fiscalização em grande escala, como locais de trabalho e tribunais, para deter suspeitos e espalhar o medo nas comunidades de imigrantes. Entre 2016 e 2020, o Departamento de Justiça, que supervisiona os Tribunais de Imigração, foi usado para pressionar os juízes a concluir os casos mais rapidamente.
Segundo o consultor político sênior do Conselho Americano de Imigração, Adriel Orozco, Trump, se eleito, tende a implementar medidas ainda mais drásticas do que aquelas do primeiro mandato. “Existem algumas áreas onde ele, provavelmente, conseguirá agir rapidamente e sem ter de seguir a Lei de Procedimento Administrativo. É provável que vejamos isso novamente e, possivelmente, ele também tomará medidas para conter a migração legal. Assim como fez antes, as admissões de refugiados devem diminuir e mais barreiras para quem solicita vistos devem ser criadas.”
O republicano, diz Orozco, provavelmente tentará acabar com o Daca, programa criado na administração de Barack Obama que beneficia cerca de 580 mil migrantes trazidos ao país ainda crianças. “Os planos para continuar a construir um muro entre o México e os EUA devem avançar e ele tentará impor novamente a permanência dos imigrantes no México, o que forçaria os requerentes de asilo a esperar do outro lado da fronteira enquanto passam pelo processo do tribunal de imigração e ou um programa de expulsão semelhante ao Título 42, que permitiu ao governo federal remover rapidamente os migrantes.”
Um ataque recente a dois policiais do Departamento de Polícia de Nova York em um dos mais importantes pontos turísticos da cidade, a Times Square, ganhou as manchetes do país. O crime foi cometido por um grupo de ao menos 12 migrantes. Seis foram presos, cinco libertados sob fiança e o restante permanece foragido. Tão rápido como um raio, um comitê de apoio ao ex-presidente lançou um vídeo no qual culpa Biden pelo espancamento dos agentes públicos. Como há muito não se via, um punhado de democratas juntou-se aos republicanos no apelo à deportação dos suspeitos, caso da governadora do estado de Nova York, Kathy Hochul. As autoridades, defendeu Hochul, deveriam “pegar todos eles e mandá-los de volta”. Um Trump risonho apareceu nos dias seguintes. •
Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nós contra eles’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.