Mundo
Lágrimas de crocodilo
Zuckerberg é obrigado a mais um ato de contrição, mas as redes sociais continuam uma terra sem lei


Geralmente, não aprovo esportes sangrentos, mas fico feliz em abrir uma exceção para a caça de executivos do Vale do Silício por uma comissão do Congresso. Também gosto de óculos caros e inúteis. E o afogamento simulado de CEOs de tecnologia no Congresso está bem aí, com fogos de artifício, uma sensação na retina breve e emocionante, embora inútil, e depois a escuridão.
O interrogatório de Mark Zuckerberg e seus colegas chefões do Vale do Silício foi um clássico do gênero: primeiras páginas, manchetes e um momento de constrangimento genuinamente notável, em que ele foi forçado a enfrentar as vítimas pela primeira vez e pedir desculpas: pais arrasados segurando as fotos de seus filhos mortos, perdidos para o cyberbullying e a exploração sexual na plataforma digital de Zuckerberg.
Menos de seis horas depois, a Meta apresentou seus resultados trimestrais, o preço das ações subiu 20,3%, proporcionando um aumento de 200 bilhões de dólares (cerca de 1 trilhão de reais) na capitalização de mercado da empresa e, se você fizer as contas, o que ele, provavelmente, faz como CEO, um docinho de 700 milhões para o próprio Zuckerberg.
Um dia depois, Biden anunciou: “Se você prejudicar um americano, nós responderemos”, e lançou mísseis contra mais de 80 alvos na Síria e no Iraque. Claro, irmão, desde que os norte-americanos não sejam adolescentes com smartphones. As empresas de tecnologia dos Estados Unidos prejudicam habitualmente os norte-americanos e, em particular, as crianças do país, embora, para ser justo, também prejudicam habitualmente crianças de todas as outras nacionalidades. O Wall Street Journal mostrou que os algoritmos da Meta permitem que os pedófilos se encontrem. O secretário de Justiça do estado do Novo México processa a empresa por ser o “maior mercado para predadores e pedófilos do mundo”. Um legista na Grã-Bretanha descobriu que Molly Jane Russell, de 14 anos, “morreu devido a um ato de automutilação, enquanto sofria depressão e os efeitos negativos do conteúdo online”, que incluía vídeos do Instagram retratando suicídio.
Embora o envio de um esquadrão de elite da Marinha para Menlo Park (sede da Meta, na Califórnia) possa ser esperar demais, há outras reações que o Congresso dos EUA poderia ter exigido, tais como – aqui está uma ideia – uma lei. Qualquer lei. Uma que, por exemplo, proíba as empresas de tecnologia de tratar crianças mortas apenas como um custo dos negócios. Porque exigir que as empresas de tecnologia não permitam que pedófilos se encontrem e lidem com crianças é o mais fácil de se alcançar em termos de regulamentação tecnológica. E mesmo isso ainda não aconteceu. Os EUA precisam urgentemente agir de acordo com suas leis antitruste e desmembrar essas empresas como um primeiro passo básico. É preciso acabar com a Seção 230, a lei que dá às plataformas imunidade contra ações judiciais por hospedar conteúdo prejudicial ou ilegal.
De que adianta colocar frente a frente um executivo do Vale do Silício e pais destroçados?
É preciso criar legislação básica sobre a segurança dos produtos. Imagine que a GlaxoSmithKline lançou um novo medicamento experimental maravilhoso no ano passado. Um medicamento que tem demonstrado benefícios incríveis, incluindo a cura de algumas formas de câncer e o retardamento do envelhecimento. Também pode causar hemorragias cerebrais e abortar fetos, mas os dados a respeito ainda não foram divulgados, então teremos apenas de esperar para ver. Há uma razão para isso não acontecer. Chama-se lei. As empresas farmacêuticas passam por anos de testes. Porque elas precisam. Porque, em algum ponto, há muito tempo, o Congresso e outras legislaturas em todo o mundo fizeram seu trabalho.
A mais recente tecnologia extremamente disruptiva do Vale do Silício, a IA generativa, foi, porém, lançada no ano passado sem sequer realizar os testes de produto mais básicos exigidos pelo governo federal. Poderia haver alguma possível desvantagem em lançar essa nova tecnologia não testada num ano em que mais seres humanos vão às urnas do que em qualquer momento da história?
Na verdade, não é preciso imaginar aonde isso pode levar, porque já aconteceu. Uma deepfake visando um candidato progressista foi lançada dias antes das eleições gerais na Eslováquia, em outubro. É impossível saber que impacto teve ou quem a criou, mas o candidato perdeu e o candidato da oposição pró-Putin venceu. A CNN relata que a mensagem da deepfake ecoou a divulgada pelo serviço de inteligência estrangeiro da Rússia apenas uma hora antes de ser lançada. E onde estava o Facebook em tudo isso, você pergunta? Onde normalmente sempre está, recusando-se a retirar muitas das postagens falsas.
De volta ao Congresso dos EUA: interrogar os executivos de tecnologia é bom para preencher o tempo entre a difícil tarefa de não aprovar legislação tecnológica. Passaram-se seis anos desde o escândalo Cambridge Analytica, quando Zuckerberg se tornou o primeiro grande executivo de tecnologia a ser intimado a comparecer ao Congresso. Foi uma revelação, pois parecia que o Facebook poderia finalmente ser controlado.
Mas a aparição de quarta-feira 31 foi a oitava de Zuckerberg. Nem o Facebook, nem qualquer outra plataforma tecnológica, foi subjugada. Os Estados Unidos não aprovaram uma única lei federal. Enquanto isso, o Facebook fez certa lavagem tecnológica de seu nome para remover o fedor dos escândalos de dados e da infiltração do Kremlin, e de vez em quando oferece seu CEO para um massacre ritual no Senado.
Para compreender o domínio cada vez menor dos EUA no mundo, sua legislatura quebrada e sua captura pelos interesses corporativos, o simbolismo de um senador a forçar Zuckerberg a pedir desculpas aos pais enlutados, enquanto o Congresso, aquele grande edifício branco invadido por rebeldes que se encontraram nas plataformas de rede social, não faz absolutamente nada para restringir o poder singular de sua empresa, é tão bom quanto qualquer lugar para começar.
Tivemos oito anos para aprender as lições de 2016, e ainda assim aqui estamos. A Grã-Bretanha respondeu enfraquecendo o órgão que protege as eleições e degradando as leis de proteção de dados para “desbloquear oportunidades pós-Brexit”. As comissões do Congresso norte-americano são agora um culto popular que passa por movimentos ritualizados de prestação de contas. Entretanto, há no mercado uma nova droga tecnológica milagrosa que pode criar oportunidades econômicas incalculáveis ou armas biológicas letais e a desestabilização do que resta da democracia liberal. Provavelmente ambos. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.
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