Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Vive la France!

O Brasil está diante de uma teia de acordos neoliberais

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Lula e Macron, por razões diferentes, desconfiam do acordo UE-Mercosul – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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A França resiste tenazmente ao acordo Mercosul-União Europeia, como é público e notório. Devemos concluir que ele está morto e enterrado? Talvez não. Vou explicar por que ainda estou inquieto.

Há forças poderosas, dos dois lados do Atlântico, que insistem em concluir a negociação. Do lado europeu, principalmente a Alemanha e a Comissão Europeia. Do nosso lado, a Argentina e, ao que parece, o Brasil. Pode parecer estranho que o governo brasileiro esteja no mesmo barco que a Argentina de Milei. Infelizmente, é o que parece estar acontecendo.

Desde o ano passado, argumentei que havia motivos abundantes para abandonar essa negociação. Não vou repetir os argumentos. Remeto a um artigo recente publicado aqui nesta coluna (“Complexo de vira-lata”, 30 de novembro de 2023). Lembro apenas que o acordo abre os mercados do Mercosul à livre concorrência com as firmas industriais e demais empresas da União Europeia. Os principais prejudicados são a indústria e a agricultura familiar brasileiras.

E é exatamente por isso que a Alemanha continua lutando pelo acordo. As suas indústrias, as principais beneficiárias, estão ávidas para ganhar acesso pleno aos nossos mercados. Estão apreensivos com o posicionamento da França, que teme a concorrência do setor agroex­portador do Mercosul. Note-se que o acesso adicional que os nossos produtores ganham com o acordo é pequeno. Mas os seus efeitos estão concentrados em alguns países, notadamente na França.

Como se explica que o governo brasileiro persista na busca do acordo? Pelo que pude depreender, as razões para a insistência são essencialmente do campo da política internacional. Há três argumentos desse tipo.

Em primeiro lugar, o governo parece convencido, por enquanto, de que é vantajoso fechar um acordo de grande magnitude com a Europa. Prepara-se, talvez, para proclamar que uma negociação que vinha se arrastando há mais de 20 anos foi concluída agora por causa da capacidade negociadora do governo. Os aspectos econômicos ficariam em segundo plano.

Do ponto de vista estratégico, ademais, faria sentido aproximar-se da Europa para reduzir a dependência em relação à China. O mercado chinês já é há alguns anos o principal destino das nossas exportações, em parte porque lá não enfrentamos barreiras expressivas à entrada de nossos produtos primários. O mercado europeu ajudaria supostamente a diversificar as nossas exportações.

Em terceiro lugar, levanta-se o temor de que a Argentina de Milei, frustrada com o eventual não fechamento de um acordo de tipo liberal, resolveria sair do Mercosul para negociar individualmente com a União Europeia. O acordo com os europeus seria assim condição sine qua non para a sobrevivência do Mercosul.

Os três argumentos são frágeis, no meu entender. Que sentido faz, primeiramente, comemorar a conclusão de um acordo emperrado há 20 anos ou mais? Não estava emperrado por acaso. A razão é que os europeus sempre ofereceram pouco e nós, até agora, não víamos vantagem em aceitar um acordo desequilibrado. Não se requer capacidade negociadora especial para fechar um acordo nessas bases. Qualquer um conclui uma negociação entregando, no essencial, as demandas da outra parte.

Não fica claro, em segundo lugar, como um acordo que nos fornece pouco acesso adicional aos mercados europeus poderia servir de contraponto à dependência em relação à China. Para isso, seria preciso que o acordo trouxesse possibilidades de aumentar as exportações do Mercosul. Ora, por causa das preocupações protecionistas na Europa, é exatamente isso que o acordo não nos proporciona.

Em terceiro lugar, a saída da Argentina do Mercosul é pouco plausível. São fortes os laços econômicos criados dentro do bloco, especialmente com o Brasil. Não é casual que Milei tenha abandonado as suas bravatas de campanha em relação ao Mercosul. E mesmo que Milei tentasse, o Congresso, provavelmente, não aprovaria a saída.

Para concluir, lembro que o acordo com a União Europeia não é o único problema na área das negociações comerciais. Ele é um de vários outros do mesmo estilo negociados no período Paulo Guedes. O ministro de Bolsonaro os deixou prontos ou quase prontos. Um deles, o acordo Mercosul-Cingapura, foi assinado em dezembro. Há outros na prateleira – com o Canadá, com a Associação Europeia de Livre-Comércio e a Coreia do Sul. Se não houver uma mudança de rumos, o Brasil estará em breve enredado em uma teia de acordos neoliberais.

Do seu túmulo político, Paulo Guedes comemorará. •

Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vive la France!’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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