Cultura
Uma menina e algumas ditaduras
Sobre o que não falamos insere-se na linhagem de narrativas protagonizadas por vozes feminimas que partem do íntimo para retratar as opressões vigentes no país


A primeira coisa que Clara, a narradora de Sobre o Que Não Falamos, nos diz sobre si é que, quando criança, gostava de ficar doente, e na cama. “Com febre ou dor no corpo, eu não apanhava”, logo explicará. O reumatismo, que carrega desde os 4 anos, será tão definidor de sua vida quanto o ambiente violento que a rodeia.
As primeiras páginas do romance de Ana Cristina Braga Martes, socióloga de formação e ex-professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), nos transportam de forma bastante visual para a casa simples onde vivem a menina, sua avó e seu avô, um homem que carrega em si a raiva.
Não demora para compreendermos que aquela casa, com uma cerca feita de madeira e restos de troncos, é marcada por não ditos e ausências. O que a autora fará, ao longo da narrativa em primeira pessoa, é desenovelar a origem de tantos silêncios.
Sobre o Que Não Falamos integra-se a duas correntes fortes da literatura brasileira contemporânea: àquela das vozes femininas não brancas e à da revisão histórica do período ditatorial sob a ótica das vidas íntimas.
A protagonista criada por Ana Cristina Braga Martes está entre a infância e a adolescência e, pela própria idade, tanto desconhece muitas coisas do mundo quanto está começando a desvendá-las.
Sobre o Que Não Falamos. Ana Cristina Braga Martes. Editora 34 (200 págs., 62 reais) – Compre na Amazon
Embora o avô a chame de “boa menina” e sonhe, para ela, um futuro que espelhe o seu – colecionando borboletas e cuidando de um estreito armazém com sacas de farinha, milho e arroz empilhadas –, as atitudes dos moradores que a cercam, na Vila, e a vivência na escola vão, aos poucos, permitindo que ela, como as borboletas, tão presentes em sua casa, passe por uma metamorfose.
Ao longo desse processo, nós, leitores, acompanhamos a reconstituição de três personagens que, apesar de centrais, são tratados de forma evasiva: a mãe, de quem a menina tinha um único retrato, o pai e a professora.
Ana Cristina, além de trabalhar os aspectos macro de uma sociedade marcada pelo conservadorismo e pelo soar ainda abafado da palavra ditadura, esculpe, com delicadeza, tipos humanos e sentimentos. Suas descrições são eficazes em despertar no leitor sensações físicas muito claras, como a dos pés descalços raspando no cimento crespo ou a da sopa repetida todos os dias ao jantar.
Assim como o louva-deus que guarda vivo em uma caixa de sapatos, Clara respira com ar rarefeito – mas o ar, assim como os tempos, pode mudar.
Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um câncer devastador’
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