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O cultivo de múltiplos papéis

Quando não está em Hollywood ou Nova York, o ator Willem Dafoe, de 68 anos, cuida dos animais em seu sítio, nos arredores de Roma

O cultivo de múltiplos papéis
O cultivo de múltiplos papéis
No badalado Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos, Dafoe dá vida a um cientista genial e recluso, chamado Godwin Baxter – Imagem: Atsushi Nishijima/Searchlight Pictures
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Willem Dafoe está em seu apartamento em Nova York vigiado por duas obras de arte. Atrás dele há uma pintura a óleo de seu pai, adereço criado para um filme que exigia “retratos dinásticos” de sua família. “Gostei muito do meu pai, então ele está aí.” Estamos conversando pelo aplicativo Zoom e ele gira a câmera. “Mas, olhe, melhor ainda! Aqui está o contraponto. Está vendo?” Ao lado dele, há uma grande fotografia da artista Marina Abramović, sua amiga. O motivo da entrevista é o lançamento de Pobres Criaturas, a nova e impressionante aventura de Yorgos Lanthimos.

Dafoe vive um cientista, gênio e recluso, chamado Godwin Baxter – ou apenas God (Deus) – que dá vida a Bella, vivida por Emma Stone. Embora o filme concorra a 11 Oscar, Dafoe ficou de fora da corrida. Mas ele já foi indicado ao prêmio quatro vezes.

A primeira delas foi por Platoon (1987) e, desde então, ele vem trabalhando de maneira sólida, e até voraz: fez mais de 150 filmes e trabalhou com todos os diretores interessantes, de David ­Lynch a Wes Anderson, de Werner ­Herzog a Paul Schrader e Martin Scorsese.

Dafoe, 68 anos, voltou a Nova York por um breve período. Ele se mudou para a cidade pela primeira vez em 1977, quando tinha 22 anos, porque queria ser ator de teatro comercial. Juntou-se, porém, a um grupo de teatro experimental, no qual conheceu sua primeira companheira, com quem teve um filho, em 1982, e seguiu morando de modo intermitente na cidade.

“Nunca me entedio. Mais jovem, ficava entediado e inquieto. Agora, com o envelhecimento, faltam-me horas do dia para fazer todas as coisas que quero”

No início dos anos 2000, ele casou-se com a diretora italiana Giada ­Colagrande, com quem mora em Roma. Ele tem amigos e família italianos, fala italiano e vive cercado de animais em seu sítio. “Nunca sei o quanto devo falar sobre isso”, diz, desconfiado. “Digamos que, basicamente, sou um cavalheiro-agricultor.”

Tenho certeza de que não sou o único que gostaria de saber mais: “Bem, talvez você consiga tirar um pouco de mim”. Dafoe nunca tivera animais de estimação, mas agora tem “muitos” e uma horta, nos arredores de Roma. “Sou, basicamente, vegetariano, então faço isso pelo prazer da companhia deles e para tentar lhes dar uma vida boa, o que é um pouco ingênuo.” Eles colhem ovos de galinhas e peruas, lã de ovelhas e alpacas.

Seu estilo de vida parece muito diferente daquele da cena teatral de Hollywood ou de Nova York. “Mas, ainda assim, é como estar no teatro. Acordo, piso no chão e saio correndo. Meu dia é dedicado a fazer coisas e cuidar de coisas. Mãos ociosas são a oficina do diabo”, diz, sorrindo. “Outra razão pela qual não gosto de falar sobre isso é que me lembro de um dos primeiros filmes em que trabalhei.”

Ele se refere a O Portal do Paraíso (1980), de Michael Cimino. “Eu nunca tinha estado em um estúdio ou filme de Hollywood. Quando entrei no set, pensei que todo mundo estaria falando sobre poesia, cinema e filosofia. E todos falavam sobre seus cachorros, cavalos e fazendas, e eu pensei: isto é um porre! Agora, me tornei um deles.”

Dafoe sempre se equilibrou entre o ambiente da corrente dominante e aquele mais experimental. Quando chegou em Nova York, na década de 1970, ele tinha acabado de fazer uma turnê pela Europa com uma companhia de teatro itinerante e pensava que se tornaria ator de teatro profissional: “Mas descobri que não estava interessado em estar com pessoas que tinham muito pouca ambição”.

Ator em 150 longas-metragens, ele foi indicado ao Oscar pela primeira vez por Platoon. Homem-Aranha foi um de seus sucessos de bilheteria – Imagem: Columbia/Sony Pictures e MGM

No cinema, enfrentou grandes desafios, dos horrores psicossexuais de Lars von Trier, que o transformou em Jesus Cristo em Anticristo (2009) aos terrores folclóricos terrenos de Robert Eggers, que o escalou para O Farol (2019). Mas ele fez também muitos sucessos de bilheteria, como, por exemplo, a franquia Homem-Aranha.

Quero saber o que pensa sobre o cinema hoje. Ele já havia insinuado achar que Homem-Aranha, em 2002, foi uma anomalia: não eram usuais os filmes de histórias em quadrinhos. Agora, os super-heróis dominam os cinemas e muitos argumentam que, entre os sucessos de bilheteria e a arte, não há meio-termo. Em princípio, ele hesita. Diz não pensar muito no assunto, por estar sempre muito ocupado. Mas, de repente, se anima: “Quando acontece algo como a greve dos roteiristas, acordo e digo: ‘Escute, bebê, você precisa entender algumas dessas coisas’, porque senão estará dirigindo às cegas, sabe?”

O mais fácil, diz ele, é que, hoje, as pessoas assistem aos filmes de modo diferente – a maior parte das vezes em casa, e não nos cinemas. “E isso é trágico. Filmes mais difíceis, desafiadores, não funcionam tão bem se o público está em casa, com um tipo de atenção diferente daquele que se tem no cinema. Sinto falta do lado social, da forma como o cinema se encaixava no mundo. Você via um filme, saía para jantar, conversava sobre ele depois e a coisa se ampliava. As pessoas agora estão em casa e dizem: ‘Ei, querida, vamos assistir algo que nos distraia esta noite’. Aí assistem cinco minutos de dez filmes e dizem: ‘Esqueça, vamos dormir’.”

Os estúdios também mudaram. “Eles não fazem filmes como costumavam fazer. Estão sendo financiados por empresas de brinquedos e outras entidades e se tornam o veículo para fazer filmes, porque sabem fazer isso. O streaming está se tornando um monopólio. Eles detêm os meios de produção e distribuição, o que é muito complicado”, diz, para, em seguida, afirmar que, na verdade, não sabe nada sobre esse novo cenário.

Para mim, parece saber. “Apenas socialmente”, insiste. “Não conheço de fato os aspectos comerciais, mas noto uma proliferação de intermediários. Não existem produtores corajosos como antes. Existem alguns mais experientes, mas você não tem o mesmo tipo de gente que venderia a casa para fazer um filme e faria maluquices para terminá-lo.”

Dafoe sempre tem vários projetos em andamento. Outro dos filmes que fez recentemente é Gonzo Girl, a estreia de ­Patricia Arquette na direção, em que interpreta um escritor no estilo Hunter S. Thompson, cuja criatividade há muito foi subjugada pelo excesso. Ele tem um nome diferente, mas é muito baseado em Thompson. “É claro que pegamos emprestado muito do personagem da vida real, mas nunca quis fazer uma imitação. As cinebiografias que tentam fazer uma imitação sempre me deixam louco, porque acabam virando um espetáculo do ator. Em algum lugar isso me envergonha e me repele. Realmente, os atores que me repelem são os carentes demais.”

Em uma indústria repleta de egos inflados, parece que o de Dafoe é bastante saudável. “Espero que o que você diz seja verdade”, afirma. “É claro que precisamos de um ego para sair da cama. Para querer fazer coisas precisamos ter algum senso de identidade. Mas não devemos nos iludir quanto a nós mesmos, ser inflexíveis e pensar que somos especiais.”

“Filmes mais difíceis, desafiadores, não funcionam tão bem se o público está em casa, com um tipo de atenção diferente daquele que se tem no cinema”

Me pergunto se Dafoe, com seus mais de 150 filmes, seu teatro, sua arte, suas alpacas e seus vários projetos em curso, se entedia com facilidade. “De jeito nenhum!”, responde imediatamente. “Nunca me entedio. Mais jovem, ficava entediado e inquieto. Agora, com o envelhecimento, faltam-me horas do dia para fazer todas as coisas que quero.” Isto só aconteceu à medida que envelheci e outras coisas desapareceram. Eu diria que é uma boa troca.”

O que ele perdeu? “Não muito. Talvez um pouco de tônus muscular, a espessura das sobrancelhas e meus lábios ficaram mais finos. Estou brincando. Mas não estou”, ri. “Quando você é mais jovem, parece muito mais uma estrada aberta. Depois de avançar mais na linha, começa a pensar muito mais no que está por baixo da linha.”

Dafoe diz que costumava ser a pessoa mais jovem em todos os grupos e que agora é o mais velho. “Leio o tempo todo sobre pessoas com quem trabalhei que estão morrendo, e é do tipo: o que aconteceu? Bom… elas tinham 82 anos”, diz. Os jovens são, muitas vezes, motivados pela necessidade de encontrar seu lugar no mundo. “Acho que não é por acaso que existem diferentes fases da vida, e não tenho preferência por uma ou outra, mas nem tudo tem de acontecer quando se é jovem. Muita coisa pode acontecer depois.”

Parece que Dafoe nunca esteve tão ocupado. Ele está prestes a começar mais um filme, com a ex-diretora associada do Young Vic, Nadia Lati. E já finalizou outro filme com Lanthimos e Stone. E ainda no radar Os Fantasmas se Divertem 2. Alguns dias antes da entrevista, Dafoe deixara escapar que interpretaria um detetive morto-vivo.

“Faça-me o favor”, diz ele, irritado consigo mesmo. “Eu disse isso e logo me arrependi, porque rapidamente me ocorreu que Tim Burton é, provavelmente, uma daquelas pessoas que não gostam que falem sobre o filme. Acho que ele provavelmente pensou: ‘Aquele filho da mãe devia ter ficado de boca fechada!’”

Ele ri: “Tive um momento de fraqueza, sabe? Falei demais…” •

Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.


Filme-estrela do Oscar

Pobres Criaturas concorre a 11 estatuetas, mas Williem Dafoe ficou de fora da lista

por Ana Paula Sousa

Emma Stone foi indicada na categoria de melhor atriz por sua encarnação de Bella Baxter, a jovem que volta à vida por obra de um cientista excêntrico – Imagem: Searchlight Pictures

Se, nas bilheterias, o fenômeno de marketing Barbenheimmer foi estrondoso, nas indicações ao Oscar ele deixou de se mostrar imbatível.

Enquanto Oppenheimmer, a segunda parte da falada hashtag, concorrerá ao prêmio em 13 categorias, Barbie foi superado, na quantidade de indicações, por Pobres Criaturas e Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese. O filme da boneca, além disso, ficou de fora de duas categorias importantes: melhor direção e melhor atriz.

Pobres Criaturas, por sua vez, além de ter sido o segundo filme com maior número de indicações – 11 ao todo – concorrerá às principais estatuetas. Ficou, porém, de fora justamente da categoria de melhor ator, na qual Willem Dafoe era dado como favas contadas.

Do elenco, foram indicados Emma Stone, como melhor atriz, e Mark Ruffalo, na categoria de ator coadjuvante. O diretor grego Yorgos Lanthimos, que imprimiu sua marca e sua vocação para a polêmica adaptação do romance de 1992 do autor escocês Alasdair Gray, também disputará a estatueta.

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

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