

Opinião
A teia da mentira
O esquema de espionagem em prol de Bolsonaro era uma das engrenagens do ecossistema de desinformação


Investigações deflagradas pela Polícia Federal no fim do mês de janeiro mostraram um ardiloso e bem montado esquema ilegal de espionagem na Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, um esquema denominado de “Abin Paralela”, e o protagonismo de um personagem para o qual sempre chamei atenção: Carlos Bolsonaro, o Carluxo, filho 02 de Jair Bolsonaro. Para além disso, as operações da PF revelaram como a desinformação sistematizada é uma peça vital para os projetos políticos da extrema-direita. Arapongagem não é exatamente uma novidade no Estado brasileiro, que ainda vive à sombra da herança autoritária do regime militar que golpeou o País há 60 anos. Os métodos escusos permanecem, assim como a presença de militares alinhados ao bolsonarismo em postos estratégicos do governo.
Mas, no contexto atual, nessa aventura bolsonarista de espionagem, vimos claramente o funcionamento do que chamo de um ecossistema de desinformação, a partir das minhas pesquisas. Em linhas bem gerais, o que defino como ecossistema é uma organização complexa e dinâmica que não se restringe apenas à ação de espalhar notícias falsas. Há uma rede profissional organizada para produzir e espalhar conteúdos falsos, em várias vertentes, com muitos atores envolvidos e farto financiamento público. Tal configuração, consolidada ao longo dos últimos cinco anos com o governo Bolsonaro, teve impactos graves no funcionamento da democracia brasileira em diversos momentos: pandemia, eleição de 2022 e o vandalismo do 8 de Janeiro, em Brasília.
A partir das recentes investigações da PF e a confirmação do alcance da Abin paralela, quero destacar três aspectos que me interessam em particular, pois mostram a amplitude e o poder desse ecossistema.
O primeiro ponto é o papel de Carluxo no ecossistema e na organização do chamado gabinete do ódio. Autor de um perfil muito interessante nas redes sociais, especialmente no X (antigo Twitter), ele simulava um jeito meio doido de ser e de postar, com construções que levavam muitos críticos desatentos a apontar o dedo e a dizer: “É louco, idiota”. Em todos os momentos de crise política, lá estava Carluxo postando supostas insanidades que misturavam Bíblia e literatura, e que acabavam por distrair todo mundo. Mas o 02 nada tinha de maluco, era o articulador que preparava o terreno fértil para despejar todo tipo de conteúdo desinformativo para enganar, confundir, criar e manter realidades paralelas.
A esse aspecto se liga o segundo, a potência da construção de narrativas e sua força no ecossistema de desinformação. Narrativa é uma construção argumentativa que tem a função de convencer alguém de determinados temas, de conduzi-lo por determinados caminhos de percepção sobre os assuntos. É uma peça fundamental para que visões de mundo se consolidem e sejam propagadas, pois organiza, para os cidadãos, a percepção de determinadas realidades, portanto, nada tem de modismo da atualidade.
Dessa forma, é muito importante considerar o que sustenta essa construção, essa produção, que não é aleatória, tampouco casual. As narrativas produzidas por esse ecossistema em funcionamento foram elaboradas, pensadas e articuladas – e, agora sabemos, graças às investigações sobre a Abin paralela, tinham um enorme respaldo em termos de informação e fonte de informação para ser produzidas. Ou seja, não basta apenas criar uma narrativa, é preciso ter elementos que deem respaldo a esse conteúdo, para que ele tenha credibilidade e seja assimilado e defendido por quem o recebe. Assim fez a estrutura organizada por Carluxo: os conteúdos criados tinham respaldo informativo dado por órgãos públicos com credibilidade.
Nada é aleatório ou espontâneo. E Carluxo está longe de ser louco, sabe muito bem o que faz
Vamos a um breve passo a passo para entendermos mais claramente: um tema pulsante é elaborado para solapar a credibilidade de figuras importantes no cenário político (exemplo, o envolvimento de magistrados do STF com o PCC). A narrativa a ser produzida precisa ter respaldo de fontes e documentos oficiais para ser disseminada e causar impacto na opinião pública. A Abin paralela espiona ilegalmente e produz essas “informações”. A narrativa é criada e transformada num produto midiático. Espalhada aos quatro ventos, por todos os meios, toma conta das discussões da vida cotidiana, estando presente nos bares, nos pontos de ônibus, entre os motoristas de aplicativo – recentemente, numa corrida em Campinas, o motorista do Uber, depois de perguntar o que faço, falou que fake news é um problema e que todo mundo sabe que quem manda no estado de São Paulo é o PCC, e que os juízes, os ministros do STF, todo mundo sabe como funciona e ninguém quer fazer nada. Simples assim. Para além dos aplicativos, os documentos produzidos pela Abin paralela alimentavam vários portais que difundiam e seguem a difundir desinformação, a circulação não se restringe ao grupo de WhatsApp das famílias.
Chegamos ao terceiro aspecto importante. Precisamos entender que tudo está interligado, as dinâmicas de desinformação não se dão de modo desarticulado, solto, e essas interfaces apareceram como sinais que poucos quiseram ver. Uma narrativa polêmica e impactante não ganha corpo e projeção por si só, pelo alcance nas redes sociais. Ela é fruto de produção cuidadosa e é retroalimentada pelos vários outros sistemas que apoiam o bolsonarismo, como parte do universo religioso e parte do midiático, ou seja, ela circula, tem capilaridade e ganha credibilidade.
Em relação aos sinais das mobilizações, movimentações e da articulação desse ecossistema, vale lembrar que Carluxo, como noticiado pela imprensa, fez algumas investidas para trazer ferramentas de espionagem para o Brasil. Na primeira viagem presidencial a Israel, em março de 2019, esteve na comitiva e tentou tratar do assunto com representantes de empresas israelenses. Em 2021, tentou trazer para o Brasil a ferramenta de espionagem Pegasus, do NSO Group, de Israel. O personagem que simulava estupidez e certa loucura nas redes sociais parecia saber muito bem o que fazia.
Em tempo: a extrema-direita entende a importância da comunicação e sabe o poder da desinformação para dar suporte a projetos políticos autoritários. A guerra se ganha pela produção de consenso em relação a determinadas pautas, solapando o funcionamento do Estado Democrático de Direito e produzindo realidades paralelas. •
Jornalista, doutora em Estudos Linguísticos, pesquisadora associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.
Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A teia da mentira’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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