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Bode expiatório

Os Estados Unidos e outros países ocidentais cortam o financiamento da agência da ONU em Gaza

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As vítimas. A retaliação à agência da ONU em Gaza afeta a ajuda humanitária a milhões de palestinos impedidos de escapar do enclave e dos ataques de Israel – Imagem: STR/AFP e Jaafar Ashtiyeh/AFP
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A decisão dos Estados Unidos, do Reino Unido e de outros países ocidentais de congelar o financiamento da agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos vai agravar significativamente a crise humanitária na Faixa de Gaza, alertam os palestinos. Grã-Bretanha, Alemanha, Itália, Países Baixos, Suíça e Finlândia somaram-se aos EUA, à Austrália e ao Canadá e suspenderam o financiamento depois que a ­UNRWA, a Agência de Assistência da ONU para Refugiados na Palestina, ter revelado o início de uma investigação sobre 12 funcionários que podem ter participado do ataque de 7 de outubro, liderado pelo Hamas, que matou 1.140 israelenses.

A guerra de retaliação de Israel desde então matou 26 mil e provocou uma grave crise humanitária, com cerca de 85% dos 2,3 milhões de habitantes da Faixa deslocados de suas casas.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, apelou no sábado 27 aos Estados e demais doadores para que “garantam a continuidade” do órgão. “Embora compreenda suas preocupações, fiquei horrorizado com essas acusações, apelo veementemente aos governos que suspenderam suas contribuições para, ao menos, garantirem a continuidade das operações da UNRWA”, disse em comunicado. “Os supostos atos repugnantes desses funcionários devem ter consequências… Mas as dezenas de milhares de homens e mulheres que trabalham para a UNRWA, muitos deles em situações extremamente perigosas para agentes humanitários, não devem ser punidos.” Guterres confirmou que 12 funcionários da UNRWA foram citados nas acusações. Nove foram demitidos, um morreu e a “identidade dos outros dois ainda não foi esclarecida”, acrescentou.

O comissário-geral da agência, ­Philippe Lazzarini, classificou a decisão de suspender o suporte financeiro como chocante e instou os países envolvidos a reverter a medida. “Essas decisões ameaçam nosso atual trabalho humanitário em toda a região, incluindo e especialmente na Faixa de Gaza.” Na sexta-feira 26, Lazzarini disse que Israel forneceu à UNRWA provas de que funcionários do órgão estiveram envolvidos nos ataques de 7 de outubro.

Os palestinos e os trabalhadores humanitários argumentaram que o congelamento dos fundos pode ter conse­quências catastróficas. “Aplicar sanções à UNRWA, que mal consegue manter viva toda a população de Gaza, pela suposta responsabilidade de alguns funcionários, equivale a punir coletivamente a população de Gaza, que vive em condições humanitárias catastróficas”, comparou Johann Soufi, advogado e ex-diretor do escritório jurídico da ONU em Gaza, à Agência France Presse.

A UNRWA, formada em 1949 após a criação de Israel, apoia mais de 5,6 milhões de palestinos nos territórios ocupados, incluindo Jerusalém, e refugiados e seus descendentes na Síria, no Líbano e na Jordânia. A entidade enfrenta dificuldade para angariar verbas nos últimos anos, questão drasticamente exacerbada pela decisão do ex-presidente Donald Trump, em 2018, de cortar o financiamento dos Estados Unidos. Ele foi restaurado pelo atual governo de Joe Biden, o maior doador da agência, tendo fornecido 340 milhões de dólares em 2022, mas o Departamento de Estado disse na sexta-feira 25 que “interrompeu temporariamente o financiamento adicional” enquanto analisa as denúncias. Seis outros países ocidentais seguiram rapidamente o exemplo.

Chuvas torrenciais durante o fim de semana em Gaza deixaram claro que a ajuda humanitária é desesperadamente necessária, grande parte da qual é facilitada pela UNRWA. Imagens de acampamentos improvisados no sul da Faixa mostraram tendas frágeis de tecido e lona desabando em meio a enchentes e lama.

O hospital Nasser, em Khan Younis, o maior ainda em funcionamento na Faixa, teria ficado completamente sem energia durante a noite. O ministério da saúde local disse que 174 palestinos morreram e 310 ficaram feridos em 24 horas.

Trata-se de uma vitória de Israel, que quer ver o organismo longe da região

Hussein al-Sheikh, chefe da Organização para a Libertação da Palestina, também apelou aos países doadores para reverterem imediatamente suas decisões, que, segundo ele, implicam “grandes riscos políticos e de ajuda humanitária”. “Neste momento específico, e diante da agressão contínua ao povo palestino, precisamos do máximo apoio a esta organização internacional e de não cortar o apoio e a assistência a ela.”

O congelamento dos repasses provocou a condenação do Hamas. “É claro que a UNRWA está sujeita a chantagem por parte de países que apoiam o terrorismo israelense. Embora os palestinos da Faixa de Gaza enfrentem o extermínio em massa, mesmo de acordo com o Tribunal Internacional de Justiça”, afirmou num comunicado, referindo-se à decisão do tribunal superior da ONU de que Israel deve evitar atos de genocídio em Gaza.

Ao todo, 152 funcionários da ONU foram mortos na ofensiva de quase quatro meses por Israel, e as relações entre a ­UNRWA e o Estado israelense, gélidas na melhor das hipóteses, se deterioraram após um recente ataque a um abrigo da UNRWA em Khan Younis, que matou 13 pessoas. De acordo com a agência, os disparos de um tanque israelense atingiram o prédio onde 800 civis buscavam refúgio. Segundo o exército israelense, o incidente está sob análise, e é possível que o ataque seja “resultado do fogo do Hamas”.

A crise poderá ter impacto nas operações da agência da ONU em Jerusalém e na Cisjordânia. No início deste mês, a Autoridade Terrestre de Israel mandou a organização desocupar um complexo na Jerusalém Oriental ocupada e emitiu uma multa por falta de licenças de construção. O ministro das Relações Exteriores israelense, Israel Katz, disse em uma rara declaração no sábado 26, dia sagrado judaico, que o país tomará medidas para remover a UNRWA da Faixa de Gaza após a guerra. “Há anos que alertamos: a UNRWA perpetua a questão dos refugiados, obstrui a paz e serve como braço civil do Hamas em Gaza.”

Mairav Zonszein, analista sênior do grupo de pensadores International ­Crisis Group, disse na plataforma digital X: “Israel está construindo um caso contra a UNRWA há muito tempo. Afirmou há semanas que quer sua retirada gradual de Gaza. “Independentemente da veracidade da acusação, a decisão de dar essa notícia parece uma tentativa de desviar a atenção da decisão do Tribunal Internacional de Justiça sobre o genocídio em Gaza”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bode expiatório’

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