

Opinião
Ele não vai se adaptar
Durante mais de duas horas, ele pegou uma estrada boa e foi deixando pra trás aquele verde, cada quilômetro que se aproximava da cidade grande


O ano novo só começou pra ele no dia dezessete de janeiro, uma quarta-feira, bem no meio da semana.
Isso porque no último dia do ano velho, ele foi embora pro mato, pra Serra da Mantiqueira, rodeado de verde e ar puro. Mas, quando chegou o dia dezessete, ele teve de voltar, não teve jeito.
Durante mais de duas horas, ele pegou uma estrada boa e foi deixando pra trás aquele verde, cada quilômetro que se aproximava da cidade grande, a metrópole, uma das maiores do mundo, onde mora desde janeiro de mil novecentos e oitenta.
Até os vinte e dois anos de idade, viveu numa cidade média, nem muito grande, nem muito pequena. De repente, as circunstâncias fizeram com que ele, jovem rebelde, fosse morar em outra cidade, grande, mas muito diferente de tudo que ele conhecia. Nem a língua ele falava. Não conhecia o dinheiro de lá, os hábitos.
Ficou conhecendo o grapefruit, um dia em que almoçou no bandejão da faculdade. Ficou encantado com aquela laranja enorme, meio cor de rosa, partida no meio, ali na bandeja e, ao lado, um pacotinho de açúcar. Imaginou que se comia com açúcar e era mesmo. Grapefruit é muito amargo.
Pensando bem, ele se acostumou com aquela cidade que tinha um sistema de transporte maravilhoso. Ele percebeu que podiam soltar ele em qualquer canto da cidade, qualquer arrondissement, que bastava olhar pra um lado e pro outro que ele logo enxergava um M luminoso, indicando metrô.
O tempo passou, ele aprendeu a língua e os hábitos do País: cumprimentar dando quatro beijinhos, por exemplo. Nesse tempo, teve dois filhos e quando o mais velho tinha dois anos, ele resolveu voltar pro seu País, angustiado que estava.
Angustiado quando chegava o mês de janeiro, fevereiro, o verão aqui, e ele recebia pelo correio, em envelopes verde e amarelo, fotografias dos sobrinhos que ele nem conhecia, todos peladinhos no mar de Santa Catarina. Brincando com a água do mar, tomando picolé, fazendo castelos de areia. Enquanto seus filhos, a dez mil quilômetros daqui, encapotados, brincavam no playground do prédio. Era muito triste ver os dois brincando com a areia, de luvas.
Voltou, caiu de paraquedas na maior cidade do País. Sentia um nó no peito quando ouvia aquela canção do Caetano, mas tocou o barco, fez a vida. Um dia, uma de suas filhas que nasceu nesta cidade disse uma coisa que nunca saiu da sua cabeça: “Eu gosto de morar numa cidade que tem quarenta shoppings, seiscentos restaurantes japoneses, dez shows em cartaz”. Nem mesmo o engarrafamento ela criticou.
Hoje, acho que mudou de opinião. Apesar de ser a mais urbana da turminha de quatro, nem vai a shopping. Mas, voltando à Serra da Mantiqueira, que ficou pra trás, ele pensa em um dia morar lá.
Quando entrou na Jacu Pêcego, caiu a ficha. Estava numa cidade que não tem mais muito a ver com ele. Ficou lembrando dos anus comendo mamão no quintal, os cachorros deitados na grama curtindo o sol, os gatos que, de tempos em tempos, dão um perdido.
Pensou em tudo que viveu nesses dezessete dias e, já na cama, sem a blusa de pijama de tanto calor, dormiu pensando que não. Ele não vai mais se adaptar aqui.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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