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Além dos terreiros

A digitalização, pelo Masp, de 20 mil itens do acervo de Rubem Valentim revela novas facetas de uma trajetória ímpar

Além dos terreiros
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Referências negras. À esq., o escultor, pintor e gravador em seu ateliê, em 1986. Acima, a obra Emblema-logotipo Poético de Cultura Afro-Brasileira, nº 8, de 1976. – Imagem: Jorge Bastos/MASP e Centro de Pesquisas/MASP
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A chegada de quase 20 mil documentos de Rubem Valentim ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), às vésperas da pandemia, em 2020, gerou, na equipe no Centro de Pesquisa, um misto de alegria e temor. “O material tinha ficado guardado num sótão, no Instituto Rubem Valentim, no Rio, e, por estar em uma situação não adequada, chegou contaminado”, conta a historiadora Adriana Villela, coordenadora do Centro. “Ele oferecia risco de contaminação para o nosso acervo e mesmo para os técnicos que fossem manipulá-lo.”

A solução para o problema foi encontrada junto ao Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipem), que propôs o uso de radiação com raios gama nos papéis e negativos. Os itens foram divididos em grandes caixas e mergulhados numa enorme piscina de radiação.

“Discutiu-se a quantidade de raios gama para não haver perdas e, ao mesmo tempo, garantir que tudo que era biológico morresse”, explica Adriana. Feita a desinfecção, a equipe passou a realizar o trabalho de identificação, higienização e descrição do material.

O projeto de digitalização do acervo de Rubem Valentim, que começa agora a ser divulgado, além de iluminar pontos menos conhecidos do percurso do artista, nos ajuda a entender a entrada dos museus na era digital, que implica uma relação desafiadora com seu passivo analógico.

Embora formado em dois cursos universitários, ele era chamado de autodidata

“O maior desafio nem é digitalizar, mas garantir o acesso, estruturar os metadados e fazer a manutenção dos arquivos, com back-ups e atualizações. O processo de digitalização suscita várias questões”, pontua Adriana. “O negativo, se guardado em condições ideais, dura mais de 50 anos, o que dificilmente acontece com um arquivo digital. Quem consegue ler um disquete hoje?”

O sistema no qual os documentos estão sendo inseridos reúne, em si, outros quatro sistemas. Um deles, para se ter uma ideia, possui a função de executar operações de verificação para conferir se algum dos arquivos ficou obsoleto ou foi corrompido.

Esse processo inclui até mesmo uma mudança no léxico, que vai desde a padronização na identificação de um artista até a inserção do material nas novas leituras sobre a arte. Na década de 1990, exemplifica Adriana, não havia a preocupação com a presença de artistas mulheres num acervo e a ideia de decolonialismo estava restrita a pequenos círculos acadêmicos. A própria presença dos arquivos de Valentim no Masp reflete essas mudanças que a passagem do tempo e a tomada de consciência impuseram.

“Acho que há uma tendência, nesse processo de recebimento e digitalização de acervos, de se pensar em artistas que não tiveram a possibilidade de ter ­suas trajetórias registradas em catálogos”, diz Matheus de Andrade, que é assistente curatorial no Masp e se debruça sobre esse acervo para investigar, em sua pesquisa de mestrado, a atuação didática e política de Valentim. “Essa documentação contribui para a compreensão da trajetória do artista, algo muito importante para a pesquisa e raro no Brasil”, diz.

A chegada do material ao museu remonta à exposição Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas, de 2018. “É sempre a partir das exposições que conseguimos a incorporação do arquivo do artista”, diz o curador Fernando Oliva, citando os exemplos de Maria Auxiliadora (1935-1974) e Judith Lauand (1922-2022).

No catálogo daquela exposição, Oliva e Adriano Pedrosa definem Valentim como alguém que submeteu as linguagens dominantes nos anos 1950 e 1960 – abstração geométrica, construtivismo, concretismo – a referências africanas, “através dos desenhos e diagramas que representam os orixás das religiões afro-brasileiras”. Hoje, Oliva afirma que o “Valentim concretista” não se permite apartar do “Valentim popular” nem do “Valentim religioso”, uma vez que todos “fazem parte de uma mesma percepção de mundo”.

Nascido em 1922, o ano da Semana de Arte Moderna, em Salvador (BA), numa família simples, Valentim cresceu sob a influência do candomblé, da capoeira e da vida nas ruas. Apesar de contar que desde os 9 anos desenhava e pintava, no momento de escolher uma faculdade ele optou por Odontologia. Formou-se na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1946, e chegou a trabalhar dois anos como dentista.

Retas, triângulos e círculos. À esq., páginas de um caderno com estudos de símbolos e signos, na década de 1980. Abaixo, uma serigravura, sem título, de 1989, doada pelo artista ao Masp – Imagem: Biblioteca do Centro de Documentação/MASP e Jorge Bastos/MASP

Já em 1948, passou a fazer parte do movimento de artes plásticas baiano e a viver uma vida intelectual que o levou, inclusive, a cursar Jornalismo, na mesma UFBA. Em 1957, muda-se para o Rio de Janeiro e, no ano seguinte, participa, pela primeira vez, da Bienal de São Paulo.

No início da década de 1960, foi morar em Roma, onde conheceu Giulio ­Carlo Argan (1909-1992), importante teórico da arte moderna, e chegou a expor com o concretista Valdemar Cordeiro. Na volta ao Brasil, mudou-se para Brasília e passou a lecionar na Universidade de Brasília (UnB). Na capital federal, chegou a comprar um terreno, na Asa Sul, com o objetivo de ali concentrar sua obra, mas nunca conseguiu realizar esse sonho.

Parte dessa história está contada nos muitos negativos agora cuidadosamente embalados e catalogados; nos dez cadernos com notas, esboços, desenhos, triângulos, círculos e quadrados; nas notas fiscais da venda de obras; nos áudios de entrevistas recuperados; e nas correspondências trocadas com personalidades.

O material teve de ser jogado em uma piscina com raios gama para ser desinfectado

“Os manuscritos trazem muitas informações sobre o processo de criação desse centro cultural em Brasília, que nunca se realizou”, diz Andrade. “Decepcionado e deprimido, ele volta para São Paulo e, logo em seguida, descobre um câncer.” Algo que tem chamado atenção do pesquisador é que, a despeito de ter feito duas faculdades, ele era chamado de autodidata.

“A crítica reproduziu essa ideia porque não tinha onde pesquisar, e o próprio Valentim aceitou esse lugar”, analisa. “A Aracy Amaral, em seus trabalhos sobre os concretistas brasileiros, coloca Rubem Valentim num lugar à parte. Ele trabalhava, sim, referências dos terreiros, mas trabalha também as questões modernas. Além disso, ocupou o espaço público em São Paulo e Brasília.”

Os registros da construção do Marco Sincrético da Cultura Afro-Brasileira, erguido na Praça da Sé, em São Paulo, há 45 anos, são uma das preciosidades registradas nos negativos fotográficos. Eles já foram, inclusive, emprestados para a exposição Fazer o Moderno, Construir o Contemporâneo: Rubem Valentim, aberta há quatro meses no Instituto Inhotim (MG).

Valentim, escultor, pintor e gravador, teve reconhecimento e destaque em vida, mas foi apenas nos anos mais recentes, quando a representação dos negros nos museus passou a ser encarada e problematizada, que sua presença na história da arte brasileira ganhou relevo e nuances. E o papel que um arquivo tem nesse processo fica demonstrado em um número: nos últimos dois anos, o Masp rea­lizou 80 atendimentos de pesquisas de instituições brasileiras e estrangeiras interessadas em Rubem Valentim. •

Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Além dos terreiros’

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