Artigo
Antecedentes golpistas
A Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma e a prisão de Lula foram o prenúncio


Por mais assustadoras que tenham sido as imagens transmitidas ao vivo em 8 de janeiro de 2023, apenas a geração que cresceu com a Constituição de 1988 e ainda não tinha vivido experiências de autoritarismo político foi tomada pela surpresa. Se olharmos para nossa história constitucional desde a Independência, a democracia esteve bem distante da monarquia, da república oligárquica e da ditadura. Somente uma pequena parte da nossa história pode ser descrita como de uma república democrática, e mesmo assim são comuns momentos de efervescência política, como os dois processos de impeachment de presidentes da República ocorridos desde a promulgação da Constituição.
O 8 de Janeiro, portanto, não foi um ponto fora da curva. Milhares de insatisfeitos, há dias reunidos nas calçadas do quartel militar em Brasília, destruíram prédios e patrimônio público, em um claro ato de insurreição política que, ao mesmo tempo, invocava um golpe militar e cuspia sobre a recente decisão da soberania popular que havia dado a vitória a Lula. Se o 8 de Janeiro não foi um ato incongruente com a nossa história, ao contrário do que aconteceu nos EUA com a invasão do Capitólio, a reação das nossas elites políticas foi quase surpreendente. Nem as Forças Armadas, nem a mídia corporativa, nem o empresariado saíram em defesa dos insurretos. Ao contrário, uma enorme mobilização de políticos, sistema de Justiça e meios de comunicação impediu o rompimento da institucionalidade vigente e a violência dele decorrente, mantendo o País no rumo da legalidade.
Um conjunto de fatos permitiu e antecedeu o 8 de Janeiro. Impedir, por meio de um golpe militar, que Lula voltasse a governar pela terceira vez foi o grande objetivo da insurreição ocorrida em Brasília. Mas a decisão do ministro Gilmar Mendes de não permitir que Lula se tornasse ministro no governo Dilma Rousseff, o processo de impeachment da presidenta em 2016, a Operação Lava Jato e a consequente prisão do atual presidente, tudo se desenrolou com o apoio das elites políticas e sempre com o objetivo de afastar o Partido dos Trabalhadores do governo e Lula, do poder. Tais violências à democracia antecederam o 8 de Janeiro, contaram com o apoio de importantes setores das elites e pavimentaram a insurreição que se organizou em torno dos quartéis. A erosão democrática teve início lá atrás.
Na Europa, o compromisso republicano antecedeu o democrático, os quais passaram a se entrelaçar mais fortemente após a Segunda Guerra Mundial, com a criação de Estados de Bem-Estar Social e, como consequência, de sociedades mais inclusivas. Por aqui, a democracia segue um tanto desgarrada da questão republicana. Não há dúvidas de que o processo de criminalização da política, que termina por fraturar a democracia, é resultado da atuação de poderes que ultrapassam seus limites constitucionais de atuação, violam o princípio republicano e vêm em favor do projeto político de elites que não toleram a ideia de uma sociedade menos desigual. É exatamente por saber que as elites brasileiras jamais desenvolveram compromissos com os princípios republicanos que o povo deste País historicamente deposita na democracia representativa as esperanças de mudanças estruturais.
O Brasil também carece de um pilar republicano. Certos poderes ultrapassam os limites de sua atuação
O 8 de Janeiro não passou de uma nova tentativa de desrespeito à soberania popular, tal como aconteceu tantas outras vezes. Agora era, no entanto, um ato esperado por todos aqueles que, desde a posse de Bolsonaro, acompanhavam as manifestações contra a institucionalidade vigente, não apenas do presidente, mas de vários de seus auxiliares e apoiadores. Corretos estavam aqueles que se manifestaram contra o impeachment de Bolsonaro. Seria uma nova violação da soberania popular, para além de presentear a extrema-direita com o discurso da criminalização da política, levando a alternância do poder para um modo judicial – e não eleitoral – e, finalmente, colaborando com a erosão democrática. No futuro, dar-nos-emos conta da importância de termos derrotado Bolsonaro em um processo eleitoral democrático, ainda que o agora ex-presidente tenha aberto um rombo no Erário público, na tentativa de comprar a sua vitória.
Um ano depois daquele triste e impactante dia, temos a exata noção de como a participação do Supremo Tribunal Federal foi decisiva para o restabelecimento da ordem. A mídia corporativa, desde o início da insurreição, transmitia a sua indignação diante das imagens e insistia na importância do respeito ao resultado eleitoral. As Forças Armadas, em momento algum, manifestaram sinal de que estavam dispostas a ocupar ilegalmente o poder, desferindo outro golpe de Estado, como fizeram no passado. Finalmente, a articulação do governo Lula e a correção de todas as medidas adotadas a partir do Poder Executivo deixaram o País novamente tranquilo.
Um ano depois, que lições podemos tirar desse triste episódio? A primeira e, certamente, a mais importante: precisamos lutar em favor do republicanismo. Se o Supremo Tribunal Federal agiu corretamente quando o País dele precisou, não resulta daí que tenha ganhado alguma espécie de legitimidade política popular, pois sua ação não está respaldada em votos, nem existe – como afirmou em texto o ministro Luís Roberto Barroso – alguma “razão sem voto” na qual se respalde. Do fato de ter defendido a Constituição de 1988 não decorre, por exemplo, que o STF possa, como tem feito, confrontar a competência da Justiça do Trabalho apenas porque a maioria dos seus ministros tem alguma espécie de “desacordo” com a legislação trabalhista brasileira, por ser protetiva do trabalhador. Os ministros do STF não são eleitos pela soberania popular e violam a democracia quando exorbitam os limites de sua atuação.
A segunda lição está relacionada à necessidade de controle das redes digitais. A erosão da democracia não teria ocorrido com tanta facilidade não fossem as notícias falsas, a criação de fatos inexistentes, as fotos que retratavam momentos jamais acontecidos ou os depoimentos falaciosos de especialistas comprados. Esse talvez seja o ponto sobre o qual haja mais consenso atualmente.
Finalmente, é preciso que tenhamos o compromisso de não permitir que o 8 de Janeiro se repita. E não há como garantir isso senão diante da responsabilização de todos os envolvidos, sejam políticos, sejam militares ou empresários. Responsabilizar apenas os insurretos que invadiram e depredaram o patrimônio público não é suficiente. Há políticos que insuflaram gente por intermédio das redes digitais, há militares que rascunharam peças jurídicas que iriam dar verniz legal ao golpe e há empresários que participaram com recursos financeiros. Nenhum deles pode escapar dos rigores da lei. •
*Professora associada da PUC-Rio, sócia-fundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Antecedentes golpistas’
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