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Bucha de canhão

A extrema-direita aproveita-se da insatisfação dos trabalhadores alemães

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Greve. Os agricultores puxam as manifestações país afora. Os extremistas da AfD pescam eleitores – Imagem: Michaela Rehle/AFP
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O simbolismo que os agricultores alemães escolheram para expressar seu descontentamento com o governo nos primeiros dias do novo ano foi tão claro quanto assustador: ao lado das estradas rurais de todo o país, foram vistas forcas improvisadas com semáforos dependurados, em referência às cores dos três partidos no governo.

As esculturas ameaçadoras são arautos de protestos e greves intersetoriais sem precedentes a partir da segunda-feira 8, e falam de uma mudança drástica de humor num país há muito elogiado por sua abordagem de buscar o consenso nas relações setoriais, sobretudo em comparação com sua vizinha França, mais tradicionalmente propensa a greves.

Com eleições importantes nos estados da Alemanha Oriental, até mesmo alguns agricultores temem que o novo espírito revolucionário possa fazer o jogo de uma extrema-direita efervescente. Um protesto nacional de oito dias por parte de trabalhadores agrícolas, a envolver bloqueios de autoestradas e descrito pelo chefe da associação de agricultores como algo “que o país nunca experimentou antes”, seguirá adiante, apesar da reviravolta parcial do governo sobre os cortes nos subsídios ao diesel e nos incentivos fiscais aos veículos agrícolas que os desencadearam.

Num sinal dos níveis de raiva que motivaram os protestos, cerca de cem agricultores impediram, na noite da quinta-feira 4, o desembarque do vice-chanceler e ministro da Economia, Robert Habeck, de um ferry no norte da Alemanha, levando-o a regressar à ilha onde tinha passado as férias. O político verde teria convidado alguns manifestantes para apresentar suas­ preocupações no ferry, o que eles recusaram. “Fico pensativo, sim, até preocupado, que o clima esteja esquentando tanto”, disse Habeck em comunicado.

Emparedado. O chanceler Scholz foi obrigado a cortar subsídios para o setor agrícola – Imagem: Markus Schreiber/AFP

Os transportadores de mercadorias dizem que se somarão aos protestos dos agricultores para expressar sua consternação com o aumento dos pedágios para veículos de carga pesada, em vigor desde o início de dezembro, começando com bloqueios em centros regionais e culminando numa manifestação de caminhões na capital federal, Berlim, nos dias 18 e 19. Pegar o trem para escapar do caos nas estradas provavelmente não será uma opção para os viajantes: os trabalhadores ferroviários afiliados ao sindicato dos maquinistas alemães, GDL, anunciaram sua intenção de retomar as greves nacionais por salários e horas de trabalho, após uma trégua no período do Natal.

Os protestos dos agricultores independentes e dos transportadores de mercadorias e as greves no setor ferroviário estatal não são coordenados, centrando-se em reivindicações diferentes e em alguns casos relacionados a disputas que antecedem o governo atual. Mas sua concordância deu à extrema-direita uma oportunidade perfeita para alimentar fantasias populistas de um golpe de Estado. Em seus canais de comunicação social, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) pintou um quadro de gente comum “levada à ruína por uma liderança política irresponsável como na Idade Média” e apelou aos cidadãos para se juntarem ao que chamou de “greve geral”.

Nos canais de mensagens do ­Telegram, alguns manifestantes compartilharam fotos geradas por IA de um Reichstag em chamas cercado por tratores, com as palavras: “Venha para Berlim e afaste o semáforo! A Alemanha está ficando azul”, em referência à cor da AfD.

A associação de agricultores alemães tentou distanciar-se das “fantasias violentas de golpe de Estado” e criticou o bloqueio do ferry de Habeck. “Esses protestos são água para os moinhos da AfD”, disse Clemens Risse, secretário-geral da associação de pequenos agricultores da Saxônia, o estado oriental onde o partido de extrema-direita lidera as pesquisas para as eleições de setembro. “Os crescentes encargos burocráticos e o aumento dos custos ao longo dos últimos dez anos criaram uma imensa frustração agora manifestada”, acrescentou. “Então a AfD aponta para as importações de cereais isentas de tarifas provenientes da Ucrânia e diz aos agricultores que o governo tenta salvar o mundo, mas não cuida dos seus.”

Os cortes nos subsídios que irritaram os agricultores alemães neste inverno foram menos planejados do que forçados ao governo do chanceler Olaf Scholz por uma oposição que agora esfrega as mãos alegremente. Em novembro, o tribunal constitucional da Alemanha decidiu que o “fundo para o clima e a transformação” de longo prazo do governo era inconstitucional, depois de a União Democrata Cristã (CDU), de centro-direita, interpor um recurso legal contra os planos do Estado de reaproveitar o dinheiro não gasto das medidas de emergência pandêmicas para iniciativas de ação climática.

A decisão bombástica fez com que os três partidos do governo – os Social-Democratas de centro-esquerda de Scholz, o Partido Verde de Habeck e o Partido Democrático Livre (FDP), liberal pró-empresas do ministro das Finanças, Christian Lindner – buscassem formas de cobrir uma brecha de financiamento de 60 bilhões de euros. Um alívio fiscal para o diesel agrícola e a isenção do imposto sobre veículos agrícolas, não apreciados nem pelos ambientalistas nem pelos liberais do mercado livre, ofereceram-se como áreas de compromisso.

A raiva populista que esses cortes agora parcialmente revistos desencadearam tem como alvo principal os Verdes, e não a CDU na oposição ou o liberal FDP, cujo compromisso com o mecanismo de freio da dívida, que limita os empréstimos a 0,35% do Produto Interno Bruto nominal da Alemanha, restringe severamente a capacidade de manobra do governo. Mas os cortes propostos foram criticados até mesmo entre agricultores simpatizantes da agenda do partido ambientalista. “É absolutamente correto transformar a agricultura alemã de dependente de combustíveis fósseis em apoiada pela energia solar”, disse Ottmar Ilchmann, produtor de leite da Frísia Oriental, na Baixa Saxônia. “Mas este não é o caminho certo.”

O corte nos subsídios ao diesel, que o governo planeja agora implementar gradualmente até 2026, provavelmente, vai afetar as explorações agrícolas menores, não as grandes empresas, e poderá revelar-se particularmente doloroso para os agricultores biológicos, que utilizam mais combustível por hectare do que a agricultura convencional. Alguns agricultores propõem que o governo poderia ter aumentado os impostos sobre a parafina ou os fertilizantes. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bucha de canhão’

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