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A voz das urnas

Dos EUA à Rússia, uma série de eleições importantes definirá os rumos da democracia mundial

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Sem novidades. Caso Trump não seja impedido de concorrer, irá enfrentar Biden. Putin consolida-se como novo czar – Imagem: Gage Skidmore, Alexey Danichev/Pool/AFP e Oliver Contreras/Casa Branca Oficial
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Quem disse que a democracia está à beira da morte? Mais de 40 países, um recorde, que representam além de 40% da população mundial e uma enorme fatia do PIB global, deverão realizar eleições nacionais em 2024. Os resultados, considerados separadamente e em conjunto, vão determinar quem controla e dirige o mundo no século XXI.

Nas apostas neste “supercampeonato” democrático multinacional e multipartidário estão alguns dos países mais poderosos e mais ricos (Estados Unidos, Índia, Reino Unido), alguns dos mais fracos (Sudão do Sul), os mais despóticos (Rússia, Irã) e os mais estressados (Taiwan, Ucrânia). Algumas eleições serão abertas, livres e justas, outras nem tanto. Algumas simplesmente não serão livres.

Paradoxalmente, esse festival de votação sem precedentes ocorre num momento em que as formas clássicas de democracia liberal sofrem um ataque existencial por parte de líderes autoritários e ditadores, partidos nacionalistas-populistas de extrema-direita como o Fidesz, da Hungria, e conspiradores golpistas militares e militantes islâmicos. A liberdade global diminuiu pelo 17o ano consecutivo, concluiu a Freedom House, órgão independente sediado nos Estados Unidos, em seu relatório de 2023: “A guerra de agressão de Moscou levou a atrocidades devastadoras contra os direitos humanos na Ucrânia. Novos golpes de Estado e outras tentativas de minar governos representativos desestabilizaram Burquina Faso, Tunísia, Peru, Brasil… A repressão continuou a reduzir as liberdades fundamentais na Guiné e a restringir aquelas na Turquia, Mianmar e Tailândia, entre outros”.

Embora 35 países tenham experimentado um declínio dos direitos políticos e das liberdades civis, 34 registraram ganhos globais, aponta o relatório. Os autocratas não foram infalíveis nem imbatíveis: “Os efeitos da corrupção e o foco no controle político, em detrimento da competência, expuseram os limites dos modelos autoritários”.

Há um sentimento generalizado de que o sistema só favorece os ricos e poderosos

Os impactos geopolíticos e econômicos de tantas batalhas eleitorais, que ocorrem mais ou menos ao mesmo tempo, poderão se combinar para desestabilizar ainda mais um mundo já instável – para o bem ou para o mal. Seria inspirador, por exemplo, se os eleitores expulsassem os religiosos conservadores, misóginos e assassinos do Irã, nas eleições parlamentares de março. Entretanto, mais de 25% dos candidatos de oposição já foram desqualificados.

Espera-se que muitos iranianos boicotem a votação. Foi o que aconteceu no Egito, onde o antigo líder golpista, Abdel Fattah al-Sisi, impediu seu único adversário plausível de se candidatar à Presidência. Da mesma forma, as eleições distritais “só para patriotas” neste mês em Hong Kong fizeram os eleitores se perguntar se deveriam se incomodar. A participação foi de 27%, em comparação com 71% antes de a China tornar o processo absurdo.

O título de eleições mais falsas de 2024 deve ir para a Rússia, com a Bielorrússia num possível segundo lugar. Vladimir Putin prendeu, exilou ou eliminou rivais. Sua candidatura a um quinto mandato presidencial será mais uma coroação imperial do que uma competição. Seu índice de aprovação pessoal permanece elevado depois de quase 25 anos no topo, pois muitos russos não conhecem outro líder. Os servos foram emancipados pelo czar Alexandre II em 1861. O czar Putin I está a inverter o processo.

Dito isso, algumas eleições podem produzir verdadeiros pontos de inflexão. Os imprevisíveis e voláteis Paquistão e Bangladesh também irão às urnas. E as eleições gerais desta primavera na Índia, a democracia mais populosa do mundo, não são uma conclusão óbvia. As esperanças do primeiro-ministro Narendra Modi de um terceiro mandato poderão ser frustradas por uma nova coligação de oposição de 28 partidos, chamada INDIA, sigla em inglês de Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano. O partido nacionalista hindu Bharatiya Janata, ao qual pertence Modi, domina o norte e o centro do país, enquanto o próprio Modi é visto como um astro eleitoral, ao contrário de Rahul Gandhi, líder do Partido do Congresso, de oposição. Suas tendências pouco atraentes e autocráticas, refletidas nas restrições ao jornalismo independente, nas mortes misteriosas de opositores no estrangeiro e na repressão brutal do exército na Caxemira, levantarão, porém, dúvidas sobre a imparcialidade da votação. Uma derrota-surpresa de Modi poderá ter ramificações estratégicas, prejudicando as tentativas dos Estados Unidos de atrair a Índia como aliada e contrapeso à China.

Concorrência. A continuidade de Modi na Índia é ameaçada pela oposição – Imagem: Joshi Hemant/Governo da India

As eleições do próximo mês na Taiwan autônoma, que a China considera uma província renegada, proporcionarão uma boa demonstração de como a democracia ainda é altamente valorizada – quando um povo determinado pode optar de verdade em meio a ferozes pressões externas. Se o partido Democrático Progressista, pró-independência de Taipei, vencer novamente, uma Pequim furiosa poderá ir além das habituais ameaças militares. Isto, por sua vez, poderia atrair rapidamente os Estados Unidos e aliados regionais.

Outra perspectiva sísmica, em termos de potenciais terremotos políticos, são as eleições gerais na África do Sul. Pela primeira vez, desde que Nelson Mandela caminhou para a liberdade e a era do ­apartheid terminou, há 30 anos, em 1994, o Congresso Nacional Africano poderá perder a maioria geral, enfraquecido por adversários como a Aliança Democrática. As probabilidades são de que o CNA, numa possível coligação com os esquerdistas Combatentes pela Liberdade Econômica, se mantenha no poder. Mas o partido parece prestes a ser punido pelos eleitores por anos de corrupção, escândalos na liderança, altas taxas de criminalidade e desemprego, e por sua incapacidade de, literalmente, manter as luzes acesas – cortes diários de energia de até seis horas tornaram-se rotina. Uma baixa participação poderia selar o destino do CNA.

A decepção com a democracia é uma questão muito discutida em toda a África, o continente que mais cresce no mundo – assim como em outros lugares. Comfort Ero e Murithi Mutiga, do Grupo de Crise Internacional, observaram que sete líderes africanos foram derrubados por militares entre agosto de 2020 e novembro de 2023. Estes estiveram entre os 13 golpes de Estado bem-sucedidos na África desde 2000, principalmente em um “cinturão de instabilidade” que se estende do Níger ao Sudão. Nem todos os líderes derrubados foram eleitos pelo voto popular.

Embora todos os golpes sejam essencialmente de natureza antidemocrática, eles têm causas diversas, que incluem abuso de poder, problemas econômicos, corrupção, insurreições islâmicas, eleições fraudulentas e rivalidades pessoais. Mas é claro que, longe de ser indesejáveis, alguns golpes de Estado recentes, como o do Mali em 2021, gozaram de apoio público substancial. A mudança de regime violenta foi melhor, segundo parece, que nenhuma mudança de regime. A maioria dos africanos “ainda tem fé na democracia, embora eles estejam desesperados para se livrar de regimes que alegam ser democráticos, mas muitas vezes deixam de cumprir as promessas mais básicas da democracia”, escreveram Ero e Mutiga. Essa conclusão certamente tem relevância universal. Enquanto isso, o show da democracia continua. Argélia, Tunísia, Gana, Ruanda, Namíbia, Moçambique, Senegal, Togo e Sudão do Sul estão entre os países africanos que realizarão eleições em 2024.

A extrema-direita continuará a avançar na Europa?

As guerras e os conflitos dificultam visivelmente a capacidade de conduzir e manter a governança democrática. A Ucrânia tem eleições presidenciais marcadas para a primavera. O mandato de cinco anos de Volodimir Zelensky terminou. Embora sob a lei marcial as eleições estejam suspensas, uma votação que funcione como válvula de segurança para libertar as tensões internas e o descontentamento popular seria um exercício válido, mesmo que Putin tente bombardeá-la. Isso mostraria que a democracia se recusa a ser morta.

Israel poderá em breve se encontrar em situação semelhante se, como o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu espera, a guerra em Gaza continuar até o próximo ano. As pesquisas sugerem que os israelenses, provavelmente a maioria, querem se livrar da coligação de extrema-direita de Netanyahu, que culpam por não ter conseguido evitar os ataques de 7 de outubro. Não estão previstas eleições, mas, com ou sem guerra, a pressão popular para a realização de uma deverá aumentar.

Pesquisas indicam que a insatisfação com o funcionamento atual da democracia é um sentimento comum em todos os países do Ocidente, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, embora se considerem o berço da democracia. Tal como na África, a democracia em si não é o problema. É a forma como é aplicada e praticada. Uma recente pesquisa de opinião da Ipsos nos países ocidentais revelou uma crença generalizada de que os atuais sistemas democráticos favorecem os cidadãos ricos e poderosos e ignoram todos os outros.

Sete em cada dez norte-americanos afirmaram que a situação da democracia declinou nos últimos anos, enquanto 73% na França concordaram. Mais de seis em cada dez eleitores no Reino Unido acreditavam que a democracia funcionava pior do que cinco anos atrás, de acordo com a sondagem. Os entrevistados em todos os países pesquisados, exceto um, que também incluíram Croácia, Itália, Polônia e Suécia, concordaram que é necessária uma “mudança radical”.

Turbulência. Em Taiwan, a China limita o espaço dos críticos na disputa esvaziada. E a extrema-direita quer consolidar sua expansão nas eleições para o Parlamento Europeu – Imagem: Sam Yeh/AFP e Daina Le Lardic/Parlamento Europeu

Mudada ou não, a Europa terá eleições em 2024 na Áustria, Bélgica, Croácia e Finlândia, bem como para o Parlamento Europeu em junho. O receio generalizado é de que haja novos avanços dos partidos nacionalistas-populistas, anti-imigrantes e xenófobos de extrema-direita, à semelhança dos observados recentemente na Itália, nos Países Baixos e na Eslováquia.

No Reino Unido, o problema é um pouco diferente. Apesar de se orgulhar de uma longa tradição democrática, a ­Grã-Bretanha enfrentou dois primeiros-ministros conservadores não eleitos em pouco mais de um ano. Estranhamente, não há certeza de que as próximas eleições gerais no Reino Unido serão realizadas em 2024.

A eleição presidencial no México, em junho, certamente chamará atenção quando, quebrando telhados de vidro, duas candidatas mulheres disputarem o cargo supremo. Mas no fim do ano todos os olhares se voltarão para os Estados Unidos, cujo confronto presidencial entre dois homens idosos, descrito como o mais importante nos tempos modernos, terá lugar em novembro.

O presidente Joe Biden divide o mundo grosseiramente em campos democráticos e autocráticos rivais. Essa luta, diz, define a época. Portanto, se não conseguir derrotar seu provável adversário republicano, Donald Trump – que diz que não agirá como ditador se for eleito, mas evidentemente mal pode esperar para fazê-lo –, muitos em todo o mundo, a começar por Putin, poderão concluir que não há esperança para a democracia.

Uma vitória de Trump, e a subsequente tragédia caótica de vingança ao estilo jacobino que inevitavelmente desencadeará, poderá subverter permanentemente a ordem internacional, inclinando a balança para o autoritarismo e a ditadura. Se os Estados Unidos, “a cidade sobre a colina”, deixarem de lutar pela democracia, ela certamente murchará e morrerá. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.

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